quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Paola Fernandes

O computador como signo na contemporaneidade:
Reflexões de um estudo de caso etnográfico
Paola Fernandes
Prefeitura Municipal de Sapucaia

Os signos são objetos naturais, específicos, e, (...) todo produto natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir, assim, um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades. Bakhtin/Volochinov

No intuito de buscar compreender o que significa a inserção dos computadores na escola, para os sujeitos envolvidos nesse processo, o texto aqui apresentado traz algumas reflexões teórico-empíricas que procuram introduzir a teoria do signo do “Círculo de Bakhtin”[1], esclarecendo e definindo questões importantes através do diálogo entre a teoria e os dados apresentados por Fernandes (2004) em seu estudo de caso etnográfico.
Muitas têm sido as discussões e reflexões acerca do papel da informática na educação,[2] ou, mais especificamente, do uso de computadores no contexto escolar. Mas, por que refletir sobre o computador como signo é significativo para o contexto educacional? Por considerarmos o diálogo estabelecido entre o referencial teórico (sócio-histórico) e metodológico (etnográfico) adotado para este estudo de caso, considerando que ambos colocam o sujeito e a linguagem em lugar de destaque, propondo a construção do conhecimento a partir das interpretações feitas pelo pesquisador.
O computador é um signo não-verbal, mas não pode ser separado do discurso, pois, mesmo o signo não-verbal banha-se no discurso, entrando na vida pela/através da linguagem. Contudo, isso não quer dizer que a palavra exceda qualquer outro signo. Isso significa, sim, que o signo cultural não se conserva isolado. Ele faz parte de uma realidade constituída verbalmente. (Bakhtin/Volochinov, 2002, p. 38; Barthes, 1985, p. 171).
E o que significa pensar o computador enquanto um signo na contemporaneidade, tendo como referencial os estudos do “Círculo de Bakhtin”? Significa compreender algumas características específicas que o definem. O homem vive cercado de signos que ele mesmo cria ou que interpreta para entender os fenômenos sociais e naturais. Retomando a epígrafe aqui citada, se “todo produto natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir, assim, um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades” (Bakhtin/Volochinov, 2002, p. 32), podemos afirmar, então, que o computador, enquanto um produto tecnológico, torna-se um signo, já que traz em si uma carga de representações simbólicas, deixando de ser apenas parte de uma realidade. O signo reflete e refrata uma realidade que lhe é exterior.
De acordo com Faraco (2003), estudioso da obra de Bakhtin,
refratar significa, aqui, que com nossos signos nós não somente descrevemos o mundo, mas construímos – na dinâmica da história e por decorrência do caráter sempre múltiplo e heterogêneo das experiências concretas dos grupos humanos – diversas interpretações (refrações) desse mundo. (p. 50)

E, se reflete e refrata uma realidade, o computador, como signo, faz emergir a consciência de uma sociedade em transformação, em que
os novos aspectos da existência, que foram integrados no círculo do interesse social, que se tornaram objetos da fala e da emoção humana, não coexistem pacificamente com os elementos que se integraram à existência antes deles; pelo contrário, entram em luta com eles, submetem-nos a uma reavaliação, fazem-nos mudar de lugar no interior da unidade do horizonte apreciativo. (Bakhtin/Volochinov, 2002, p. 136)

Tal conflito faz com que o signo se torne uma arena, onde se estabelece uma luta de classes, através do confronto de índices de valor contraditórios. Pensar a inserção do computador na escola  significa ter em mente que todo signo ideológico tem duas faces (p.58), ou seja, traz uma contradição oculta que se revela em meio às crises sociais. O que para alguns significa benefícios e avanços, para outros é nocivo e prejudicial. Assim é visto, como signo, o computador. De um lado os que acreditam e legitimam essa ferramenta e, de outro, os que a apontam como alienadora e subversiva. Além disso, “todo signo é social por natureza…” (2002, p. 58), ou seja, só pode entrar no domínio da ideologia aquilo que adquiriu valor social. Isto significa dizer que os signos estão engendrados numa teia de criação e interpretação interna a complexas e diversificadas relações de interação social.
O signo é, portanto, um elemento de natureza socioideológica, assim, “possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo [...] Sem signos não existe ideologia”. (2002, p.31). O signo é o motor que impulsiona as transformações sócio-culturais, tendo em vista a sua natureza socioideológica. E, sendo, o signo, um “fenômeno do mundo exterior” (2002, p. 33), pode se dizer que, sem ideologia o signo se transforma em sinal.
Mas, o signo só tem valor em situações de interação social, não possuindo valor em si mesmo. Todo signo deve ser contextualizado para ganhar significação. Assim, Bakhtin/Volochinov (2002) ressalta que
cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento material dessa realidade. Todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação material, seja como som, como massa física, como cor, como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer. (p. 33)

O signo, embebido de significação ideológica, está sujeito a critérios de avaliação social do meio ideológico, fazendo com que o signo e a situação social na qual ele está inserido estejam intimamente ligados. (p. 62) Para que os signos se constituam, é imprescindível que os sujeitos envolvidos estejam socialmente vinculados. Mesmo “a consciência individual é um fato sócio-ideológico.” (2002, p. 35). Segundo Faraco “sem signos não há consciência” (2003, p.81), posto que a consciência se alimenta da existência dos signos criados por determinado grupo social em suas interações.
Faraco (2003), afirma, ainda, que todo produto de criação ideológica é dotado de materialidade, ou seja, é parte da realidade concreta dos seres humanos. Assim, podemos dizer que o computador é um signo na sociedade contemporânea, tendo em vista que sua concretude vai além do instrumento e toma forma ideológica na consciência da humanidade.
Se um objeto dotado de materialidade se insere no horizonte social de um determinado grupo humano – no “círculo do interesse social” – ele fica repleto de índices de valor, tornando-se, inclusive, objeto da fala – e da “emoção” – daquele grupo. Ou seja, o próprio discurso de alguém sobre determinado objeto já demonstra uma atitude valorativa em relação a ele. Segundo Bakhtin/Volochinov (2002),
a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos (…) As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É, portanto, claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais (…) A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais. (p. 41)

A partir disso, podemos afirmar que o próprio discurso das pessoas em relação a determinado signo traz implícita a visão que se têm dele. No caso específico deste trabalho, podemos afirmar que o que os sujeitos falam sobre os computadores, de certa forma, mostra o que sentem e pensam em relação a eles. É importante ressaltar que o que se busca, nesse momento, em nada se aproxima da “análise de discurso” tradicionalmente conhecida, mas procura-se compreender o “conteúdo” das falas desses sujeitos para que se possa dar sentido às suas vozes.
Então, se “a significação é a função do signo” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2002, P.51) o que significa a implantação de uma sala de informática numa escola pública municipal, para os sujeitos envolvidos nesse processo? 
Já no dia da “inauguração” do espaço na escola, ao proferir seu discurso, o Prefeito da cidade frisou que “analfabeto antes era quem não sabia ler, hoje é quem não mexe com computador” e completou em seguida “então, quer dizer, na competição, aquelas crianças ficariam sempre para trás. […] Mas a criança não pode ficar excluída.” Essas palavras trazem, nas entrelinhas, uma visão mercadológica (neoliberal?) da inserção dos computadores na educação, que foi reforçada pelas palavras do representante presente do empresário que havia doado as máquinas: “hoje uma criança que não tiver informática (…)  ela é analfabeta. Ela vai sair aqui da cidade e vai fazer o que? Qualquer lojinha, daqui dois anos ou três anos, qualquer lojinha vai ter computador. Para pessoa trabalhar num balcão ela vai ter computador para ela mexer. E ela pode ser cursada em tudo, se ela não tiver um curso de computador, praticamente o campo de trabalho para ela vai fechar.” Outra ênfase dada à inserção no mercado de trabalho partiu da diretora da escola. Antes mesmo do início das aulas de informática na escola ela já se mostrava ansiosa: “Eu quero já começar porque a minha preocupação maior não é nem com os pequenininhos, (…) a minha 8ª série vai concluir o ano e o computador não começou. […] Eu pedi para ela [professora de informática] dar um toque maior para a 8ª série, porque estão saindo, são mocinhas, de repente arrumam um emprego. […] Ter um contato com a máquina, mais funcional. (…) É mesmo um conhecimento da máquina e o trabalhar com aquilo na utilidade do dia-a-dia.” Essas palavras apontam uma preocupação com o público adolescente da escola, posto que no município grande parte dos jovens entra no mercado de trabalho cedo, poucos cursam o ensino médio e raros são os que chegam ao curso superior.
Em dado momento, nas próprias palavras da diretora é possível perceber que a questão vai além da materialidade: “não é o computador-máquina, era o ato em si, a idéia, a sala. Eu falei ‘gente, a criançada vai ficar doida’. No outro dia não era nem meu horário, eu vim de manhã, porque para a criança, ‘gente’, isso é muita coisa. Aí no recreio eles ficavam na janela (…) mas eu fico com pena, porque eles ficam namorando do vidro.”
Nas falas de algumas professoras nota-se, inclusive, a expectativa gerada nos professores diante das possibilidades que se descortinam. A professora de uma das turmas observadas afirma que “para eles [os alunos] vai ser até um estímulo. Acho que vai ter mais estímulo. Igual eles têm que ir para o computador, digitar alguma coisa, eles têm que saber até as letras... Eu acho até um estímulo.” Enquanto a professora de outra turma diz: “é uma coisa tão nova, principalmente para eles. Eu acho que vai dar um novo impulso sim, porque... Que criança que não quer ter um computador?” Ainda nesse sentido, uma terceira professora da escola enfatiza: “Eu acho que seria excelente, se todos pudessem ter acesso, principalmente esses com dificuldade. Eu acho que seria um incentivo.” Embora utilizando diferentes termos – estímulo/impulso/incentivo - as três professoras entrevistadas indicaram as mesmas expectativas frente à chegada dos computadores na escola.
Já a professora de informática afirma que “eles [os alunos] ainda não enxergaram uma perspectiva maior do que essa máquina pode proporcionar” e diz que, por isso, as crianças acabam se interessando mais pelas brincadeiras e jogos que podem ter acesso no computador.Mas as expectativas não são geradas apenas no que se refere aos alunos. Segundo a diretora da escola, é preciso “mostrar para eles, para o professor também ver no computador um instrumento de aula. Por quê? Tanta coisa que ele pode usar” e afirma, ainda, não ter encontrado entre os professores nenhum tipo de resistência com relação a inserção dos computadores na escola, embora diga que alguns não sabem e não demonstraram interesse em aprender  por achar uma “coisa distante”.
Mas não foi apenas dentro dos muros da escola que a possibilidade da chegada dos computadores causou expectativa. Ao perguntar para um dos alunos da turma observada se seus pais pretendiam comprar um computador, sua resposta foi: “É o sonho da minha mãe, meu, do meu pai”. Tal afirmativa foi confirmada posteriormente em entrevista com sua mãe, depois de dizer que seu filho estava “super animado” com a aula de informática, ela declarou: “O meu sonho, agora, é um computador, mas só quando eu puder comprar. Agora eu não estou podendo comprar, não”. Outra mãe de uma aluna da escola enfatizou: “Ela não pode perder a oportunidade..”.E disse ainda que a filha está “doida num computador” e que o pai falou que não podia comprar agora, mas que iria comprar um computador para ela.
Para os alunos, a chegada desses computadores pode ter significados diferentes. Em conversa informal com a professora de informática, ela, lamentando o fato de ser necessário cobrar uma taxa dos alunos, relatou uma história sobre uma aluna que esteve um dia na sala e falou que não seria bom ter “aula de computador” na escola, pois sua mãe não a deixaria fazer e que isso seria muito ruim, porque ela só poderia ficar olhando. Por outro lado, ao perguntar a um aluno, por que ele queria fazer as aulas de informática, ele respondeu: “Porque eu acho legal, interessante.”. Relembrando o comentário da professora de informática sobre o fato de as crianças não enxergarem uma perspectiva maior que o computador pode oferecer, pode-se notar que, embora indiquem sentidos diferentes, a visão que essas crianças apresentam da chegada dos computadores na escola ainda se apresenta superficial. Contudo, é imprescindível reconhecer o impacto causado pela implantação dessa sala de informática na referida escola.
Refletir a teoria do signo e buscar compreender o próprio computador (objeto) como um signo na contemporaneidade foi uma tarefa, no mínimo, ousada. Ousada e conflitante. Haveria mesmo fundamentos para fazer tal assertiva. A questão que me propus discutir aqui, no entanto, pareceu-me inovadora. É na ênfase das conotações tecnológicas que nosso estudo se desenvolve. Primeiramente, porque todo objeto traz em si uma função, uma finalidade de uso. Contudo, há sempre um sentido que extrapola essa utilidade primeira. A sociedade constrói signos de acordo com os movimentos que a impulsionam e o computador pode ser visto como um signo cultural, que “resulta de um consenso entre indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de interação”. (Bakhtin/Volochinov, 2002, p.44). Todo signo é aberto a novas significações. Seu valor é baseado em suas funções e usos.
Ao tentar compreender os sentidos que uma sala de informática têm para os diferentes sujeitos envolvidos em seu processo de implantação, o que pretendi foi, a partir das colocações do “Círculo de Bakhtin”, ainda mais uma vez, refletir. Refletir e amadurecer algumas características intrínsecas ao signo, que podemos definir como: ideológico; social; algo que reflete e refrata a realidade; indica mudanças sociais e; apresenta duas faces contraditórias.
Pensando sob este prisma, portanto, o computador torna-se um signo completo. É ideológico, possuindo um sentido que excede suas especificidades e sua materialidade. É social, tornando-se parte do horizonte social por meio de situações interpessoais. Reflete e refrata a realidade em transformação, tornando evidente a interrelação existente entre o homem e o mundo. É indicador das transformações sociais, fazendo despertar no contexto observado uma tomada de consciência das atuais mudanças sociais e históricas. Apresenta duas faces contraditórias, gerando um conflito – inevitável – acerca de sua utilização, especialmente no contexto escolar.

Bibliografia
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal.  Marina Apenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
_____. (VOLOCHINOV) ­Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 2002.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as idéias linguísticas do círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar Edições, 2003.
FERNANDES, Paola. Em tempos de computador e Internet: um estudo sobre a implantação de uma sala de informática em uma escola pública municipal na cidade de Sapucaia/RJ. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2004.


[1] Recentemente foi recolocada a polêmica questão da autoria de alguns textos dos membros do “Círculo de Bakhtin”. Optamos, neste estudo, por adotar a postura de incluir os dois nomes na autoria dos textos citados
[2] Segundo Barreto (2003), a própria utilização das expressões “tecnologias NA educação” ou “tecnologias E educação” traz implícita a concepção de aproximação ou distanciamento – respectivamente – entre os termos.

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