quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Renata Lucia Baptista Flores, Nélia Mara Rezende Macedo, Núbia de Oliveira Santos

Encontrar, compartilhar e transformar: Sobre a pesquisa-intervenção com crianças
Renata Lucia Baptista Flores[1]
Nélia Mara Rezende Macedo[2]
Núbia de Oliveira Santos[3]
“Viajar é isto:
deslocar-se para um lugar onde possamos descobrir que há, em nós,
 algo que não conhecíamos até então.”
Contardo Calligaris[4]

Inspiradas pela epígrafe, diríamos que pesquisar é como viajar: é deslocar-se ao outro; descobrir e descobrir-se; transformar e transformar-se; permitir-se revelar algo inesperado e ser revelado a partir da relação com o outro que, mais que um objeto de pesquisa, é seu interlocutor e aquele que lhe permite encontrar o desconhecido. Em que medida “encontrar”, “compartilhar” e “transformar” se convertem em princípios filosóficos para uma metodologia de pesquisa? Esta é questão central que este texto traz para o debate com o objetivo de apresentar os fundamentos de abordagens metodológicas de pesquisa-intervenção.
Tal acepção de pesquisa nos convoca a buscar encaminhamentos de encontro com o(s) outro(s) que a traduzam em prática. E este texto nasce exatamente do desafio de sistematizar os pressupostos teórico-metodológicos que temos construído a partir de nossos estudos e incursões em campo com crianças sob a perspectiva da pesquisa-intervenção. As tensões e questões teóricas apresentadas sustentam-se nos estudos da linguagem de Mikhail Bakhtin, principalmente na relação que se estabelece entre os conceitos de dialogismo, alteridade e exotopia.
A pesquisa-intervenção como denuncia seu próprio nome, aglutina duas idéias cuja tradição no campo das Ciências Humanas e Sociais recorrentemente tem compreendido como opostos: Pesquisar e Intervir. A pesquisa ganha importância no âmbito da produção de conhecimento nas Ciências Humanas enquanto abordagem da pesquisa qualitativa, que nasce do questionamento de uma prática científica em que o fazer convencional desvinculava valores e condições subjetivas e culturais dos sujeitos envolvidos – no caso das Ciências Humanas, pessoas – numa espécie de invisibilidade da subjetividade.
Nesta perspectiva, perguntas e respostas não são tratadas como diálogos e interrelação, mas como dados a serem revelados. A pesquisa-intervenção funda-se e ao mesmo tempo diferencia-se pela clara intenção de não apenas colher dados, mas sobretudo e concomitantemente, de afetar o outro semeando nele questões.
            Tratemos disso com um pouco mais de cuidado e atenção.

Pesquisa-intervenção: contribuições bakhtinianas
Bakhtin (2006) tem um enunciado célebre, o qual tomamos a liberdade de parafrasear fazendo certa alteração: pesquisa e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em nós, na unidade de nossa responsabilidade.[5] Ou seja, nossos esforços precisam ser empregados no sentido de busca de percursos que nos constituam em condição de coerência, de convergência entre teorias – o que falamos – e práticas – o que fazemos.
As escolhas teóricas e metodológicas não se dão ingenuamente ou ao acaso, mas traduzem uma opção política, uma implicação ética com a questão que se coloca. Logo, é importante situar que, no contexto de uma pesquisa científica, toda abordagem teórica leva a um determinado enquadramento metodológico e que, nesse sentido, a pesquisa-intervenção traduz-se numa perspectiva de produção de conhecimento que articula o problema e a questão de pesquisa ao modo de fazer, tomando-os como momentos distintos, porém indissociáveis.
Trabalhamos na área das Ciências Humanas; nosso objeto de pesquisa são seres humanos. A centralidade desta situação é crucial para boa parte de nossas escolhas já que intentamos lidar com nossos estudos e com as pessoas que dele fazem/farão parte sem perder de vista sua humanidade, sem, portanto, ‘coisificar’. E é nesse percurso de intenção e reflexão que encontramos teóricos como Mikhail Bakhtin.
Vale ressalvar que este autor não se dedicou a tratar especificamente das questões de pesquisa, mas seus estudos sobre a linguagem tem sido um referencial relevante para pensar as questões desta, inclusive no que se refere à especificidade das relações humanas: relações que se estabelecem imersas na linguagem, também nas situações de pesquisa desta área de estudo.
Objetivando tratar das questões que envolviam os estudos linguísticos de seu tempo, Bakhtin aponta um caminho que traz à tona o ser humano e a ideia de que com cada ser vem a rede de sentidos e significados que as relações com o(s) outro(s) inevitavelmente lhe conferem e fazem acompanhar.
            Essa perspectiva de olhar que se funda a partir da teoria da linguagem bakhtiniana parece de grande relevância para uma área que finca seus estudos na prática discursiva estabelecida no encontro com o outro, como destaca Amorim (2004) ao dizer que não há trabalho de campo que não busque um interlocutor.
No entanto, a autora pondera que seria absolutamente possível um pesquisador, mesmo das Ciências Humanas, lançar mão de métodos e estratégias que esvaziam por completo as subjetividades, ignorando a potencial produção de sentidos e significados que se encontram nos textos, nos interlocutores. Mas nesse rumo nos parece que se perde exatamente o que se deveria estar buscando.
Numa situação de pesquisa, um ser, que é o pesquisador, encontra com um ou mais seres, que é/são o(s) pesquisado(s). Encontro este que precisa estar a serviço da escuta, da percepção. E neste ponto mais um apontamento de Bakhtin (2006) nos faz refletir: Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos nossos olhos.” (p. 21), o que nos parece significar que este(s) outro(s) a quem encontramos certamente tem mais a nos dizer do que nós (e nosso mundo) possamos imaginar ou intentar vir a ouvir. É aqui que reside o conceito de exotopia.
A riqueza dessa perspectiva parece ser a possibilidade de encontrar o outro inesperado na pesquisa e, por vezes, esse outro ser a si mesmo! Portanto, perceber o interlocutor, no caso o pesquisado, como um alguém que pode nos levar a ver coisas que não teríamos como encontrar sem este encontro – coisas inclusive sobre nós mesmos que não temos possibilidade de enxergar por estarmos na posição em que irremediavelmente estamos –; como alguém que nos fornece ângulos não captáveis por nossa total incapacidade de ver de onde ele vê, nos parece que é abrir espaço para descobertas insuspeitadas na pesquisa, é potencialmente sair do lugar de quem atesta e figurar entre os que constroem. O conceito de exotopia situa um lugar exterior, o excedente de visão que o autor tem em relação ao personagem se refere à posição que cada sujeito ocupa no mundo o que lhe dá uma maneira única e singular de olhar.
                No contexto da pesquisa, destacamos o olhar exotópico do pesquisador que permite pensar a partir de um lugar exterior único, singular, onde é possível que se veja do sujeito algo que ele mesmo não pode ver. Ou seja,
(..) é dado ao sujeito um outro sentido, uma outra configuração, que o pesquisador, assim como o artista, dá de seu lugar, isto é, dá aquilo que somente de sua posição, e portanto com seus valores, é possível enxergar. (AMORIM, 2004, p.14).

Para autora, o olhar do pesquisador busca captar e compreender o que outro olha, ou seja, olhar pelo olhar do outro, ver o que o que só o outro pode ver, do lugar que ele ocupa. Após este mergulho, o pesquisador volta ao seu lugar, que, por ser exterior ao lugar do outro, torna possível a partir dos seus valores, princípios e perspectivas dar uma totalidade, um acabamento daquilo que vê. Só o outro que está de fora pode dar uma imagem acabada daquilo que observa, ou seja, o acabamento é um ato generoso de dar de si, dar de sua posição, dar daquilo que somente sua posição permite ver e entender. (idem, p.97)
E é nesse exercício, também alteritário, que se pode vir a colocar-se exotopicamente em relação ao vivido. Logo, o conceito bakhtiniano de dialogismo é mais um princípio teórico-metodológico que possibilita o confronto e a partilha de ideias e sentidos, num processo de alteração mútua e incessante.
O dialogismo está relacionado à pluralidade de vozes que produzem os discursos e o modo como elas convivem quando traduzidas em texto. É o princípio dialógico que compõe a linguagem, no que diz respeito às práticas discursivas. Transpor este conceito para o campo da pesquisa nos permite olhar para o texto escrito dentro de uma perspectiva dialógica, pois este se constrói na relação entre diferentes enunciados, os dos interlocutores – alteridade – e os dos outros textos – interdiscursividade – sendo estes elementos as bases da concepção dialógica de um texto. Entretanto, cabe deixar claro que tal intencionalidade dialógica não é decidida por aquele que o produz; ele se coloca dialógico, polifônico ou monológico quando o texto se apresenta, ou seja, a forma como o enunciado do pesquisador considera a palavra do outro, suas condições de produção, influencia e é influenciado constatemente pela voz do outro.
Associa-se ao conceito de dialogismo as ideias de inacabamento, realidade em formação, inconclusibilidade e polifonia. Sobre o que caracteriza a polifonia, Bezerra (2008) afirma:
É a posição do autor como regente do grande coro de vozes que participam do processo dialógico. Mas este regente é dotado de um ativismo especial, rege vozes que ele cria ou recria, mas deixa que se manifestem com autonomia e revelem no homem um outro “eu para si” infinito e inacabável. Trata-se de uma “mudança radical da posição do autor em relação às pessoas (grifos do autor) representadas, que de pessoas coisificadas se transformam em individualidades. (p. 149).

Assim, podemos compreender que a produção de um texto é a produção de vozes que dialogam com outros diferentes textos, vozes que falam da história de um grupo social, de um determinado tempo, ecos que confrontam diferentes crenças e valores. Problematizar o dialogismo no texto – presença de outro discurso no interior do seu discurso – pressupõe reconhecer a polifonia como a pluralidade de vozes que podem habitá-lo.
Sob a perspectiva da pesquisa-intervenção, ganha vigor o desafio/compromisso de levar para o texto da pesquisa as marcas que o outro deixa na situação do campo. Implicadas com toda a reflexão que apresentamos até aqui, provocamos: Como não suprimir a voz das crianças ao traduzir em texto científico todo o processo de negociação e partilha de sentidos que se dá no campo?

Referências
AMORIM, Marília. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo: Musa Editora, 2004, 302p.
______________. A contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação ética, estética
Bakhtin, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006, 468p.
BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: Conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2008, (p. de 191- 200).



[1] Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro / Professora do Ensino Fundamental do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[2] Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro / Professora do Ensino Fundamental do Colégio Pedro II.
[3] Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro / Professora da Educação Infantil do Instituto Superior de Educação – ISERJ/FAETEC.
[4] “Ilhas Desconhecidas”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2911200726.htm. Acesso em julho de 2011. 
[5] De fato a frase de Bakhtin é “Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade”. É encontrada no texto “Arte e responsabilidade”, na p. XXXIV de livro citado nas referências ao final.

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