quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Maria Teresa de Assunção Freitas

Reflexões bakhtinianas de uma professora
Maria Teresa de Assunção Freitas- PPGE-UFJF

Ao escrever este pequeno texto para um evento que tem como um de seus eixos temáticos “A educação como uma resposta responsável” sou imediatamente implicada pelo meu lugar enunciativo. Sou professora, essa é minha identidade, minha marca pessoal e é assim que me defino. Vou me aposentar, mas nunca deixarei de ser professora.  No meu ato de professorar o que me responsabiliza? Como responder às demandas que me colocam a minha sala de aula, meu grupo de pesquisa, a formação de professores e de pesquisadores?  Como enfrentar esse outro a quem devo ensinar e de quem devo aprender?  Como orientar e direcionar o processo de apropriação, dispondo aos alunos os instrumentos necessários para que estes, em um movimento que vai do interpessoal para o intrapessoal, possam apropriar-se das intensidades culturais e, portanto, desenvolver-se?
            Procuro elementos para refletir a partir dessas questões nas palavras sempre instigantes e desestabilizadoras de Bakhtin.
De início compreendo que na perspectiva bakhitniana, o centro organizador da atividade mental não está no interior do sujeito, mas fora dele, na interação verbal. Não é a atividade mental que organiza a expressão, mas é a expressão que organiza a atividade mental. Um falante, ao expressar seu pensamento para alguém, ou ao escrever anotando suas idéias, vê que suas palavras retornam para o interior do pensamento, enriquecidas e modificadas. A verbalização externa das idéias contribui para uma compreensão mais clara do discurso interior, organizando melhor o pensamento. O discurso interior se forma interiorizando o discurso exterior e mantendo, ainda que em grau diverso, sua característica mais constitutiva: a dialogicidade (FREITAS, 1997). Os enunciados, em seu caráter externo, são instrumentos da relação com os outros. Ao tornarem-se interiores, convertem-se em instrumentos internos e subjetivos da relação consigo mesmo. É um diálogo consigo mesmo gerado pelo diálogo com o outro.
Como possibilitar essa dialogicidade na sala de aula, nas relações de formação do professor e do pesquisador?
Bakhtin no texto “O Discurso no Romance” introduz  a presença de dois tipos de discurso: o discurso autoritário e o discurso internamente persuasivo.O discurso autoritário emana da autoridade, é imposto ao outro, exigindo que o reconheça como tal. Trata-se de um discurso monossêmico, inflexível, que exige um reconhecimento incondicional e não uma compreensão ativa. Buscando compreender esse discurso autoritário na psique, Morson & Emerson (2008) comentam que este é fechado para o crescimento e para a inconclusibilidade.  O eu deixa de crescer na medida em que assume e incorpora essas palavras autoritárias.
O discurso internamente persuasivo, por outro lado, se entrelaça com as palavras alheias, tornando-se metade minha, metade de outrem. Ele organiza do interior o conjunto de minhas palavras e estabelece um relacionamento tenso e conflituoso com as minhas outras palavras interiormente persuasivas. Ele desperta meu pensamento e minha palavra autônoma. São peculiaridades do discurso internamente persuasivo: o inacabamento do sentido para mim, sua possibilidade de prosseguir sua vida criativa no contexto de minha consciência ideológica, de minhas relações dialógicas com ela (FREITAS, 2011).
            Referindo-se à palavra internamente persuasiva Bakhtin assim se expressa
Nós a introduzimos em novos contextos, a aplicamos a um novo material, nós a colocamos numa nova posição, a fim de obter dela novas respostas, novos esclarecimentos sobre seu sentido e novas palavras “para nós” (uma vez que a palavra produtiva do outro engendra dialogicamente em resposta uma nova palavra nossa) (BAKHTIN, 1993, p.146)

O discurso internamente persuasivo não é totalmente meu. A forma de orquestrar, dentro de mim, as vozes dos outros, é que me pertence. Nesse sentido, o eu não se constitui em apenas uma voz interior particular, mas na forma com que combinamos e dialogamos interiormente com as muitas vozes que nos falam. Nesse processo “a consciência toma forma e nunca cessa de tomar forma, como um processo constante de interação entre discursos autoritários e interiormente persuasivos.” (MORSON & EMERSON, 2008, p. 236)
Como essa tensão entre os dois tipos de discurso pode ser formadora do eu e  estar presente nas relações de aprendizagem?
Na obra de Bakhtin o conceito de aprendizagem não surge explicitamente, pois seus temas de estudo estão mais vinculados com a filosofia da linguagem, a literatura, a estética e a ética na perspectiva de uma dialética dialógica. No entanto, como a linguagem perpassa o conceito de aprendizagem, vejo que no conceito de compreensão ativa está entrevista essa perspectiva. Para o Bakhtin/Volochinov (1988) a compreensão passiva é aquela que apenas identifica o sinal e o significado, tratando apenas de repetir e até memorizar o que o outro diz, mas não chegando às suas próprias palavras, excluindo, assim, a possibilidade de resposta. Não há, para Bakhtin (2003), compreensão na simples passagem da linguagem do outro para a minha. A compreensão ativa, ao contrário, é aquela em que se estabelece uma luta com a palavra do outro procurando encontrar nela os seus próprios sentidos. A compreensão ativa traz em si o germe de uma resposta e leva a apreensão dos sentidos do enunciado. “Compreender é opor à palavra do outro uma contrapalavra.” (BAKHTIN/ VOLOCHINOV, 1988, p.132). A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é a nossa compreensão”. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1988, p.133).
 Nos “Apontamentos de 1971” Bakhtin diz que
[...] a compreensão responsiva completa o texto do outro: ela é ativa e criadora. O sujeito da compreensão não pode excluir a possibilidade de mudança e até de renúncia aos seus pontos de vista e posições já prontos. No ato da compreensão desenvolve-se uma luta cujo resultado é a mudança mútua e o enriquecimento. (BAKHTIN, 2003, p. 378).

Para o autor, dois momentos são constituintes de uma compreensão ativa: o do reconhecimento do repetível e já conhecido, e a descoberta do novo. É assim que vejo a aprendizagem, nesse diálogo com o conhecido e o novo, fundidos no ato vivo da compreensão. Nessa perspectiva, Bakhtin diz que “[...] a palavra do outro coloca diante do individuo a tarefa especial de compreendê-la.” (2003, p. 380). Mais adiante no mesmo texto, Bakhtin apresenta algumas reflexões que para mim sintetizam bem o que acontece ou deve acontecer em um processo de aprendizagem. A primeira tarefa para compreender as palavras do outro, a obra escrita do autor, é procurar compreende-la como o próprio autor a compreende. A segunda tarefa é tomar distância temporal cultural e pensá-la em meu contexto, procurar minhas próprias palavras, chegar à minha compreensão ativa anotando concordâncias e discordâncias. È importante nesse processo fazer o que Bakhtin (2003) assim descreve: “Essas ‘palavras alheias’ são re-elaboradas dialogicamente em “minhas-alheias-palavras” com o auxílio de outras “palavras alheias” (não ouvidas anteriormente) e em seguida [nas] minhas palavras (por assim dizer, com a perda das aspas) já de índole criadora” (p.402).  
Essa aprendizagem nesse movimento de transformações pelas palavras é que pode gerar o desenvolvimento. Como propiciar esse movimento nas interações ocorridas nos encontros entre docente e alunos?
No conjunto dessa reflexão posso concluir que os enunciados pertencem ao mundo da vida e não são neutros uma vez que emergem de um contexto impregnado de sentidos e valores consistindo sempre em uma tomada de posição, em um ato responsivo. Dialogia e alteridade são marcas da perspectiva bakhtiniana na qual o eu é constituído pelo outro: ser é expressar-se pelo diálogo. Nesse sentido, a compreensão se torna ativa, responsiva, porque compreender é fazer uma réplica ao discurso do outro, posicionar-se diante dele. Todos esses aspectos supõem, portanto, não a identificação, mas um movimento de mudança e transformação que deve caracterizar toda relação educativa.

Referências
BAKHTIN, M. (Volochinov) Marxismo e Filosofia da linguagem. São  Paulo: Hucitec, 1988.
_________O Freudismo. S. Paulo: Perspectiva. 2007.
BAKHTIN, M. O discurso no romance. In BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética- A Teoria do Romance. S Paulo: UNESP/HUCITEC, 1993.p.85-106.
__________ Apontamentos de 1970-1971 In Bakhtin, M. Estética da Criação Verbal. S.Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 367-392.
FREITAS, M. T A.  Nos textos de Bakhtin e Vygotsky: um encontro possível. In Brait, B. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997, p.311-330.
_________Vygotsky e Bakhtin: Psicologia e Educação- um intertexto, S. Paulo:Ática,1994.
__________Discutindo sentidos da palavra intervenção na perspectiva histórico-cultural. In Freitas, M.T. & Ramos, B.S. Fazer pesquisa na abordagem histórico-cultural: metodologias em construção. Juiz de Fora: EDUFJF, 2010, p.13-24
MORSON, G. S. & EMERSON, C, Mikhail Bakhtin- Criação de uma prosaística .S. Paulo: EDUSP,2008.

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