quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Maria Inês Barreto Netto

Intertextualidade na ciência
Maria Inês Barreto Netto
Famath

Ainda que as ciências naturais sejam também um gênero do discurso, segundo Bakhtin, elas se distinguem das humanas porque o estudo da natureza não é um estudo do texto. E texto aqui para ele é tomado no seu “sentido amplo de conjunto coerente de signos” (Bakhtin, 1997, p. 329). E este amplo conjunto de signos só pode existir na relação dialógica entre interlocutores. O outro não existe na conformação do objeto (em si) de estudo das ciências naturais. É bom lembrar que entre os propósitos do pesquisador russo encontra-se também o de eliminar o “homem-coisa” da centralidade dos estudos das ciências humanas: “quando o homem é estudado fora do texto e independentemente do texto, já não se trata de ciências humanas (mas de anatomia, de fisiologia humanas etc.)(ibid., p. 334). O sujeito, o eu, é constituído social e dialogicamente pelo outro (que equivale a dizer pelos outros), formando-se assim a sua consciência.
Para Bakhtin, o objeto de estudo das ciências naturais é um fenômeno natural. Este é o marco distintivo entre as ciências porque o fenômeno natural “não pertence à esfera do signo” (ibid., p. 331), não comportando assim uma significação. O objeto de estudo dessas ciências, para ele, é um objeto mudo, pois “não interrogamos a natureza e ela não nos responde” (ibid., p. 341), e sim, organizamos as observações que dela fazemos e as experiências com ela no propósito de encontrar respostas às perguntas que nos fazemos sobre ela.
Mesmo que para o autor esta separação não seja estanque, considerando, contudo, as relações advindas desta idéia, penso não ser impertinente perguntar se o conhecimento é independente do sujeito que conhece, como, por exemplo, em Platão, Kant, Popper... A linguagem não é ação, atividade, que cria e apresenta, a realidade, nesta filosofia? Não é a linguagem atuante na construção do conhecimento pelo homem? Este é o problema que me guiará neste ensaio.

O objeto e o sujeito na ciência bakhtiniana
E é pela voz de Gramsci que inicio minha contrapalavra. Ela traz uma observação importante aos que fazem uma separação entre as ciências do homem e as da natureza, pertinente ao contexto deste ensaio considerando, principalmente, que a dialética é uma força particular desta filosofia da linguagem. Diz ele, referindo-se à posição de Lukács[1]:
“Se sua afirmação pressupõe um dualismo entre a natureza e o homem, ele está equivocado porque cai em uma concepção da natureza própria da religião e da filosofia greco-cristã, bem como do idealismo, que realmente não consegue unificar e relacionar o homem e a natureza mais do que verbalmente. Mas se a história humana deve ser concebida também como história da natureza (através também da história da ciência), como então a dialética pode ser destacada da natureza?” (Gramsci, 1991, p. 173)
Então é necessário indagar mais profundamente aos textos bakhtinianos e, pelo menos tentar, desvelar como são os objetos para o sujeito em atitude cognoscitiva.
Bakhtin (1997) diz que o sujeito diante de um objeto de estudo que não seja o homem está diante de um objeto mudo ou fenômeno natural – um outro animal não-produtor de texto, um vegetal, uma pedra, um átomo, uma estrela etc., não havendo neles mesmos uma relação dialógica. Todavia, no sujeito que estuda um objeto mudo o seu pensamento a respeito de tal objeto também nasceu no pensamento do outro, dada a natureza historicista e cultural da produção do conhecimento. Na interrogação ao objeto – para usar a mesma palavra que Bakhtin – feita pelo sujeito que o investiga as vozes de outros sujeitos ecoam e compõem os seus enunciados. Penso que o próprio processo de estudo é uma atividade mental intermediada pela linguagem, não só resultado da atividade mental. E, desse modo, a natureza só é objeto científico pela linguagem, gerando ciência, atividade científica, somente pela ação do homem.
Talvez aí resida um dos motivos para o autor afirmar não haver separação absoluta entre as nossas ciências (humanas) e as que versam sobre a natureza. Mas ele trata – não poderia ser diferente – do papel da linguagem na constituição da atividade científica como uma esfera da atividade humana nesta passagem:
“Dois enunciados, separados um do outro no espaço e no tempo e que nada sabem um do outro, revelam-se em relação dialógica mediante uma confrontação do sentido, desde que haja alguma convergência do sentido (ainda que seja algo insignificante em comum no tema, no ponto de vista etc.). No exame de seu histórico, qualquer problema científico (quer seja tratado de modo autônomo, quer faça parte de um conjunto de pesquisas sobre o problema em questão) enseja uma confrontação dialógica (de enunciados, de opiniões, de pontos de vista) entre os enunciados de cientistas que podem nada saber uns dos outros, e nada podiam saber um dos outros. O problema comum provocou uma relação dialógica” (ibid., p. 354)

Esse objeto mudo nas ciências da natureza não se faz objeto pela mediação de um signo ideológico, diferentemente do objeto das ciências humanas que ao procedimento científico se dá mediatizado pelo signo ideológico (ibid.), já que somente podemos conhecer o sujeito pelo seu discurso, pelo seu texto.
Quase 30 anos após a elaboração do livro que poderia ser considerado a base de sua teoria, em apontamentos preparatórios para um trabalho que não chegou a ser realizado, entre 1959 e 1961, a propósito da revolução causada pela microfísica e a teoria quântica, Bakhtin (1997) considera o experimentador como parte integrante do sistema experimental para compreender melhor o todo do enunciado:
“Analogia com a inclusão do experimentador num sistema experimental (enquanto parte desse sistema) ou do observador incluído no mundo observado em microfísica (teoria dos quanta). O observador não se situa em parte alguma fora do mundo observado, e sua observação é parte integrante do objeto observado” (ibid., p. 355; destaque do autor).

Apesar de “recusar a idéia de uma fronteira intransponível” (id., p. 385) entre as ciências humanas e as da natureza, em seu último escrito, em 1974, afirma que fora das ciências humanas “há um único sujeito: aquele que pratica o ato de cognição (de contemplação) e fala (pronuncia-se). Diante dele, há a coisa muda” (id., p. 403; destaque do autor).
Há, então, nessa posição conceitual bakhtiniana uma profunda divergência quanto à natureza dos objetos de estudo das ciências: o caráter dialógico do objeto em si. A dialogicidade está no homem que é o objeto de investigação das ciências humanas e não está no fenômeno natural nem na coisa em si, objetos que são das outras ciências. Esta é uma distinção de natureza filosófica. E da filosofia de Kant.
Gramsci, contudo, assinalou que a tendência ortodoxa do marxismo, representada por Plekhánov – e a participação teórica desse pensador em “Marxismo e filosofia da linguagem” é bastante explícita – “determinou o surgimento de uma oposta: a de ligar a filosofia da praxis ao kantismo ou a outras tendências filosóficas não-positivistas e não-materialistas” (Gramsci, 1991, p. 99).
E alguns estudiosos já demonstraram a base kantiana nas formulações teóricas de Bakhtin. Iná Camargo Costa (1997), por exemplo, afirma que ele desenvolve, no campo da teoria literária, o pensamento kantiano, ou seja, Bakhtin é um continuador das idéias de Kant, tomando-as como ponto de partida para fundamentar a sua elaboração sobre estética do material e a moral.
Patrick Dahlet, além de lembrar a participação de Bakhtin em grupos de estudos kantianos, afirma que “enquanto Kant rejeita qualquer possibilidade de conhecimento substancial do sujeito, Bakhtin introduz a possibilidade de um conhecimento relativo de um sujeito mantido como tal, pelo discurso dos outros” (Dahlet, 1997, p. 62), ainda que o ponto de vista do outro seja também um elemento caro a Kant para conhecer-se a si mesmo. Todavia, um sujeito “arrogante e orgulhoso de si mesmo”, segundo Jorge Larrosa (2001).
Para Bakhtin, como para o seu mestre filósofo, um predicado de um objeto, um atributo dele, pertencendo ao objeto, quer dizer, estando tacitamente nele contido – a priori –, explica esse objeto dizendo o que ele é (Kant, 1969). Assim, a discursividade que integra e constitui o sujeito torna-o diferente dos demais objetos nos procedimentos e modos de conhecer cientificamente. Segundo Patrick Dahlet (op. cit.), na filosofia kantiana “o ‘eu penso’ não deve ser considerado na fonte do pensamento, mas como um atributo do que é pensado” (p. 61).
Por certo, tal diferença, com Bakhtin, confere um status paradigmático para as ciências humanas. Entretanto, não é essa mesma discursividade – considerando a complexidade da relação linguagem-pensamento – que dá ao objeto, qualquer que seja ele, o status de científico ou não?

Por uma intertextualidade científica...
Penso que meu problema agora ganha uma outra inteligibilidade do real, aquela que emana das elaborações filosóficas de Gramsci, a filosofia da praxis, a partir da qual também tal problema instalou-se, pois ela “critica o subjetivismo transcendental que atribui a uma mente universal abstrata a garantia da verdade” (Semeraro, 2000, s/p).
Na argumentação gramsciana, o trabalho científico depende de uma específica concepção de mundo (Gramsci, 1991), de uma ideologia, porque “todas as afirmações ‘objetivas’ de ciência são sempre históricas, construídas, vinculadas aos objetivos predominantes de uma sociedade e, portanto, superáveis” (ibid.). E, na luta por essa objetividade científica, categorias e conceitos são criados, organizados, transformados e aplicados dentro da visão, dos valores e das relações que os grupos sociais estabelecem entre si – e na discursividade bakhtiniana, não faz mal acrescentar. Na filosofia gramsciana a natureza, a matéria, o objeto são significados pela atividade humana, pela praxis humana, ou seja, há um nexo orgânico, pela ação, entre sujeito e objeto (a coisa em si e o fenômeno natural, no dizer bakhtiniano). Nas palavras de Gramsci:
“Toda a ciência é ligada às necessidades, à vida, à atividade do homem. Sem a atividade do homem, criadora de todos os valores, inclusive os científicos, que seria a ‘objetividade’? Um caos, isto é, nada, o vazio, se é que é possível dizer assim, já que, realmente, se se imagina que o homem não existe, não se pode imaginar a língua e o pensamento. Para a filosofia da praxis, o ser não pode ser separado do pensar, o homem da natureza, a atividade da matéria, o sujeito do objeto; se se faz esta separação, cai-se em uma das muitas formas de religião ou na abstração sem sentido” (ibid., p. 70).

Então, na relação cultural – que é histórica e social – do homem com o fenômeno natural ou a coisa em si é que tais objetos da cognição serão significados como cognoscíveis. É a praxis humana, a relação do homem – produtor de texto – com os objetos que lhes confere o caráter de objeto da ciência ou da arte, por exemplo.
Ao tornar cognoscível o fenômeno natural ou a coisa em si o homem o faz por meio da linguagem – do seu texto. Ora, se a linguagem conforma as atitudes do sujeito ao mesmo tempo em que essas atitudes conformam a linguagem – forma e conteúdo são indissociáveis nesta filosofia da linguagem (Bakhtin, 1992) – a linguagem na ciência não deve conformar atitudes científicas no sujeito ao mesmo tempo em que essas atitudes vão conformando a linguagem científica? Se um gênero do discurso – em texto e uma coisa com que pensar – organiza e expressa as ações humanas na atividade laborativa correspondente, penso que poderíamos falar em textualidade científica. E, no problema em questão, em intertextualidade científica, não?

Referências bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 421 p.(Coleção ensino superior).
________________ (V. N. Volochínov). Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. 6 ed. São Paulo: Hucitec, 1992. 196 p. (Coleção linguagem e cultura, v. 3).
COSTA, Iná Camargo. O marxismo neo-kantiano do primeiro Bakhtin. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 1997. 385 p. P. 293-302.
DAHLET, Patrick. Dialogização enunciativa e paisagens do sujeito. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 1997. 385 p. P. 59-87 (Coleção repertórios).
GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. 9 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. 341 p.
KANT, Emmanuel. Crítica da razão pura. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1969. 271 p.
LARROSA, Jorge. Sujetos e identidades en Filosofía. La travesía del sujeto moderno. In: ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, 2001, Caxambu. 24 Reunião Anual, Trabalhos encomendados, 2001. [on-line]. Disponível na internet via www. Url: http://www.anped.org.br/24/te4.doc. Em 30 de setembro de 2001.
SEMERARO, Giovanni. Anotações para uma teoria do conhecimento em Gramsci. In: 23a REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, 2000, Caxambu. Trabalho apresentado no GT 17 – Filosofia da Educação. [on-line]. Disponível na internet via www. Url: http://www.anped.org.br/1711t.htm. Em 01 de outubro de 2000.


[1]Lukács, baseado em uma posição hegelianizante, negava a dialética da natureza, separando a história da realidade natural” (Gramsci, 1991, p. 173. N. do T.). Lukács reviu sua posição.

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