quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Maria da Penha Casado Alves

A leitura na sala de aula de Língua Portuguesa e a formação de leitores responsivos
Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

O mundo não foi feito em alfabeto.
Senão
que primeiro em água e luz.
Depois árvore.

Manoel de Barros


As nossas reflexões sobre o ensino de Língua Portuguesa se ancora nas formulações de Bakhtin e o seu círculo sobre linguagem, ato ético, compreensão responsiva, mundo da vida, teoreticismo, eventicidade, construídas ao longo de algumas obras.
O lugar de onde falamos é aquele de quem procura compreender a linguagem, as práticas discursivas como construções sociais, portanto, atividades de um sujeito que se constitui e é constituído por essas atividades a partir de um lugar que somente ele ocupa no mundo e na vida.
E esse foi o foco de Bakhtin e seu círculo: a compreensão dos atos singulares como também os processos de sua realização que envolvem diferentes e incontáveis relações e interrelações, dinamicidade onde o único e o irrepetível se articula à cadeia infinita da interação intersubjetiva. A centralidade no ato singular, no processo singular de sua realização fundamenta e ancora a arquitetônica do seu pensamento sobre linguagem, estética e ética e se coloca contrariamente a qualquer modelo teórico enformador e fechado em si mesmo. Ademais para ele, tanto a vida entra na linguagem, como a linguagem entra na vida por meio de práticas discursivas concretas. O mundo da vida e o mundo da cultura se confrontam como um jano bifronte. Assim, é apenas no evento único do ser, no processo de sua realização,  que  se poderá constituir essa unidade única. De tal modo que sempre haverá necessidade de que assumamos o nosso lugar único e singular na vida com responsabilidade, pois não temos álibi para a existência.
Contudo, muitas das aplicações de seus conceitos desconsideram tal preocupação e os reduzem a categorias imóveis, fechadas, repetíveis, desencarnadas e desbastadas de concretude e historicidade e, consequentemente, do conteúdo axiológico. Assim se deu com a cosmovisão carnavalesca que se reduziu à superficial carnavalização identificada em alguns textos literários; com o dialogismo minimizado a identificação de “vozes” em textos os mais diversos; com a sua concepção dialógica de linguagem retirada da vida, da cultura, da história, do grande diálogo do qual faz parte um sujeito que se constitui como tal na relação com o outro ou dos gêneros discursivos reduzidos a formas e modelos estáveis. No entanto, a concepção de linguagem (que fundamenta tais categorias) é intrinsecamente dialógica,  porque sempre remete a um já-dito e o homem não é o adão mítico lançando a primeira palavra sobre o mundo.
De tal forma, que a linguagem e o sujeito se constituem nesses processos interativos. Constitutivamente heterogêneo, o sujeito de linguagem se apresenta como uma incompletude fundante que sempre o lança para o outro, aqui entendido em sentido amplo que extrapola os limites da interação face a face. Assim, a interação intersubjetiva é o espaço real da língua, pois é nela que se dão as enunciações enquanto eventicidade e trabalho de sujeitos envolvidos nos processos de comunicação social na vida.
A vida tonifica a cultura, a arte e a ciência e estas tonificam a vida sem lhe conterem a mobilidade e a singularidade. Podemos nos perguntar se no ensino de Língua Portuguesa, particularmente no trabalho com a leitura e escrita, se o mundo da vida entra e ali encontra espaço para arejar e tonificar as formulações teóricas ensejadas no cronotopo escolar. O que se tem visto, no entanto, é o que o mundo da vida cede lugar ao teoreticismo estéril e repetitivo que não tem levado a práticas proficientes de leitura, escrita e compreensão do funcionamento da linguagem em diferentes esferas, em textos diversos  e em multiplos gêneros discursivos .
Não é de se estranhar que nossos alunos (do ensino básico) insistam em uma história de nãos em relação a sua língua materna: “não sei português”, “não gosto de ler”, “não sei falar”, “não sei escrever”, “não suporto aulas de português”, “não sei tal regra”, enfim, “português é muito difícil, detesto português”... Uma história de nãos que também se reflete nas vozes de professores (em cursos de formação continuada) que afirmam não saberem mais o que ensinar dadas as solicitações atuais (leitura e produção de textos, gêneros discursivos, gramática aplicada ao texto, não ensinar mais o tradicional, leia-se, a regra gramatical) e a desmontagem do seu mundo ideal “em que eu tinha um aluno, que não sabia português, a quem eu ia ensinar a língua e seus “mistérios”. Mistérios esses construídos via regras, classificações, nomenclatura; alguns deles não resolvidos nem mesmo pelos “vigilantes da língua” e seus comandos paragramaticais ou por gramáticos reconhecidos nacionalmente pela dedicação ao estudo da estrutura da língua.
 Solicitado para um trabalho no qual a tradição gramatical perdeu a centralidade, o professor de Língua Portuguesa, é um dos profissionais mais perdido em meio a uma torrente de orientações, solicitações e inovações para as quais faltam a reflexão teórica, não o teoreticismo, a consideração de sua experiência, formação adequada e continuada, políticas públicas que lhe deem condições favoráveis de trabalho e de vida. A esse ser solitário, porque desamparado, resta ser informado, iluminado com as mais recentes teorias, mesmo que não faça sentido nem para ele nem para a sua realidade. Muitas vezes esses professores recebem o tratamento nos diversos cursos de “reciclagem”, que De Certeau ( )nomeia de consumidor-receptáculo, marcado pela passividade, pelo consumo daquilo que os autores/especialistas reconhecidos produzem para a informação de uma massa de não autores, desinformados e necessitados de conhecimento afiançado.
Além disso, temos um ensino de Língua materna que tem dados os ares de seu esgotamento como se atesta nos mais diversos instrumentos de avaliação (SAEB, ENEM, PISA, IDEB,), alvos das mais diversas críticas, mas que têm causado desconforto e nos movido para alguma ação, para atos éticos em relação a quem se ensina, ao que se ensina, para que se ensina, como se ensina...
Se a vida tonificasse o ensino de língua portuguesa possivelmente teríamos algo mais significativo e produtivo. De tal modo que as nossas práticas em sala de aula seriam norteadas pelo lugar único e singular que ocupamos na vida o que implica responsabilidade, pois não temos álibi para a existência, portanto, não temos álibi para um ensino de língua materna descolado da vida, portanto, do locus privilegiado onde são engendrados, gestados, construídos os discursos, a heteroglossia dialogizada.
Tal compreensão para o ensino de Língua Portuguesa não se alinha com o discurso da prática pela prática, pela instrumentalização do sujeito para as necessidades comezinhas do dia a dia, nem com um letramento para que o sujeito apenas “funcione” diante das solicitações cotidianas (preencher um cheque, fazer uma lista de material, ler um destino no ônibus). Tal compreensão não se alinha, também, com a negação do lugar da reflexão teórica, das formulações mais elaboradas, da lida com os conceitos, nomenclaturas, classificações e da compreensão do mundo teórico e científico construído pelo homem, em momentos singulares, ao contrário, o que se critica, por improdutiva e ineficaz, é a separação entre a teoria e o mundo da vida, ou seja, a teoria que não contempla a eventicidade, a singularidade do sujeito no mundo, os lugares de onde o sujeito se posiciona e vê o entorno.   
Qualquer modelo teórico que desconsidere tal dinamismo pode cair nisso que se denomina teoreticismo fatal que engessa e reduz a compreensão desses atos singulares por operar com verdades universais abstraídas da vida e da historicidade. Nossa responsabilidade na área de Língua Portuguesa, principalmente em relação ao nível básico, implica formação inicial e continuada do professor alinhada com as atuais discussões oriundas de pesquisas realizadas em diferentes instâncias no que se refere à leitura, escrita e análise lingüística. Essa formação exige não apenas o domínio específico dos conteúdos da área, mas o enfrentamento de vários obstáculos que agravam o problema da formação docente: o divórcio entre teoria e prática, a questão da transposição didática, a desvalorização da profissão, a distância entre as instituições de formação de professores e os sistemas de ensino da educação básica, a ausência de discussão nos cursos de licenciatura dos documentos oficiais que orientam o ensino de cada área, como também, o conhecimento das reais condições de trabalho por parte dos licenciandos que redundaria em uma formação mais reflexiva e crítica contemplando um ensino mais significativo e efetivo para as realidades mais adversas.
Tal trabalho na área de Língua Portuguesa poderia nortear-se por uma concepção dialógica de linguagem que fundamentaria uma prática de ensino-aprendizagem visando extrapolar os limites da análise estrutural e gramatical dissociada de uma compreensão do funcionamento da Língua Portuguesa, na vida, uma vez que esse centramento na análise lingüística por si só tem se revelado insuficiente para ler e escrever bem na escola e fora dela. Para tanto, a compreensão da linguagem como construção social, como ato social por meio do qual os sujeitos agem no mundo mostra-se como possibilidade.  A linguagem como interação social pressupõe a interlocução, a relação intersubjetiva que considera os níveis dessa interação, os projetos de dizer, as vozes múltiplas e heterogêneas, os posicionamentos sociais, as ideologias, os valores, como também, o contexto maior no qual essa interação acontece e que abarca os sujeitos, as histórias e os lugares. Esses pressupostos norteiam o entendimento de que os textos (orais/escritos) têm autoria, história e que não carregam seus sentidos em si mesmos, mas que estes são construídos por sujeitos situados e posicionados no mundo, enfim, os contextos de produção da leitura e da escrita são considerados para um entendimento mais amplo do real funcionamento da linguagem distante daquele que a compreende como abstração, sistema autônomo que paira sob os sujeitos e para os quais se apresenta como simples exterioridade.
Vale ressaltar, ainda, que tal concepção ao considerar que o eu só se constitui na relação com o outro, na diferença, na fronteira, possibilita problematizar os discursos hegemônicos, a pasteurização das idéias, as imagens tratadas e repetidas ad infinitum e a compreender os matizes identitários engendrados nos discursos. Além desses pressupostos básicos, as ações em Língua Portuguesa podem contemplar a intersemioticidade entre linguagens, no que se refere aos letramentos multisemióticos necessários para a atuação na contemporaneidade cada vez mais marcada pelo hibridismo e pelo diálogo entre os diferentes sistemas de linguagem manifestos em diferentes textos, gêneros, suportes e discursos construídos sob a mobilidade das fronteiras. Assim, o ensino de língua portuguesa ao se pautar por essa concepção de linguagem pode garantir o acesso ao conhecimento lingüístico-textual-discursivo necessário à vida contemporânea que exige cada vez mais leitores competentes e sujeitos que atuem no mundo por meio da escrita significativa e autoral. O nosso ato ético em sala de aula poderia se pautar por esse compromisso com o discursivo que se mostra como prerrogativa para a inclusão, para o letramento, para a cidadania.
Para se construir essa prática, o ensino de Língua Portuguesa teria como unidade de análise o texto (aqui entendido como enunciado), como instância de materialidade discursiva e como lugar de estabilidade (significados ou o repetível) e instabilidades (sentidos fluidos e dinâmicos). Como tal, o texto não será gramaticalizado, ou seja, se tornar pretexto, na sala de aula de língua materna, apenas para se identificar e “analisar” em sua estrutura o que é repetível na língua e não para ser lido como manifestação de linguagem, de vozes, de instabilidade de sentidos e visões de mundo. No texto, os sentidos não apenas deslizam, mas são construídos e compreendidos responsivamente por sujeitos posicionados de um lugar que relativiza olhares, visões, compreensões e respostas. Leitura responsiva. Compreensão ativa. Sujeito autor. Sujeito em construção. Sujeito que precisa lidar cotidianamente com a dinamicidade da linguagem que termina sendo a dele mesmo.

Referências
BAKHTIN, M. (s/d). Para uma filosofia do ato. Trad. de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza, mimeo.
______. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1953/79/92.
_____. (V. N. VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988.

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