quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Laura Noemi Chaluh

Encontros e formação: sentidos de empoderamento[1].
Laura Noemi Chaluh. lchaluh@rc.unesp.br, UNESP (Univ Estadual Paulista), Rio Claro.

Introdução
Resgato neste texto algumas considerações iniciais a respeito do conceito de empoderamento e socializo quais as práticas pedagógicas que podem favorecer que o sujeito fale, assuma uma posição, se mostre a partir da palavra...
Minha inquietação com a ideia de empoderamento guarda relação com a formação inicial de futuros professores.  Coordeno, desde março de 2010, um projeto de extensão que se intitula “Grupo de Formação: Diálogo e Alteridade” (em andamento), do qual participam alunos da Licenciatura em Pedagogia. Os encontros com meus alunos são semanais e neles procuro promover um ambiente de diálogo que favoreça a reflexão, a pesquisa e a escrita e sistematização de acontecimentos vividos no cotidiano escolar.
Os alunos têm a possibilidade de estarem inseridos no cotidiano escolar e no acontecer educativo, já que o projeto de extensão articula outras duas instâncias formativas das quais eles também participam: um projeto de pesquisa que desenvolvemos em uma escola de ensino fundamental da prefeitura de Rio Claro e um curso de extensão que coordeno quinzenalmente para educadores da rede de ensino de Rio Claro.
As práticas instituídas nos encontros semanais do projeto de extensão deixam em evidência a importância de resgatar a vida e a experiência dos alunos, seja na escola ou no curso de extensão.  Resgatar a vida e as experiências implica considerá-las como ponto de partida para qualquer reflexão. As problematizações sobre educação ganham sentido quando atravessadas a partir da vida vivida e a vida revivida, e é assim que surgem as escolhas das leituras de textos relacionados com as problemáticas elencadas pelos alunos.
Ainda, no contexto do projeto de extensão, promovo situações grupais que possibilitem vivenciar o trabalho coletivo e a participação na tomada de decisões. Destaco aqui esta questão, já que o trabalho e a vida no grupo é um exercício que tem que ser valorizado se, como professores de futuros professores, temos a pretensão que eles assumam a gestão escolar para assim ser partícipes da construção coletiva da escola.  Acredito que o movimento pela busca da autonomia coletiva docente (DAVINI, 1995), da gestão de uma escola democrática, da constituição de um professor comprometido tem que ser vivido no cotidiano da Universidade e potencializado dentro desse âmbito. Nesse sentido, no contexto do referido projeto de extensão busco propiciar situações que impliquem tanto o exercício do trabalho coletivo como a legitimação dos saberes que são produzidos pelos alunos no seu próprio processo formativo. E se reconhecer como autor e produtor de conhecimento no contexto da formação inicial implica pensar que o aluno- graduando-professor em formação se enxergue como um sujeito de enunciação.
Pelas contribuições que o projeto traz para a formação dos alunos que dele participam, a partir do mês de fevereiro de 2011, o referido projeto de extensão ganhou outro patamar quando passei a considera-lo como objeto de uma pesquisa. Nesta, propus-me problematizar aspectos fundamentais dos processos formativos desencadeados na formação inicial dos futuros professores e, nesse sentido, discuto questões relacionadas com: a centralidade da linguagem e da interlocução, reconhecimento dos outros e da coletividade e o empoderamento através da palavra no diálogo com BAKHTIN (1999, 2003, 2010a, 2010b).
Neste texto, não socializo nenhuma experiência com meus alunos. Neste texto socializo meu encontro com o colaborador do estágio pós-doutoral, o professor Valdemir Miotello. Por quê? Talvez, para mostrar o sentido de uma orientação pensada como “colaboração” (segundo considera o próprio Miotello). Talvez, para mostrar que os nossos diálogos estão permeados/atravessados por acontecimentos vividos com os nossos próprios alunos e ainda, para mostrar que esses acontecimentos deixam em evidência o quanto pensar no vivido com os nossos alunos nos faz refletir acerca das práticas que instituímos como professores, formadores. E quais seriam essas práticas? Uma pista: pensamos nas práticas que favorecem o empoderamento...
Para trazer o movimento da discussão estabelecida acerca do empoderamento, socializo aqui, uma prática que eu e o professor Miotello temos instituídos após o nosso primeiro encontro: a escrita do “Diário dos nossos pensares”. Essa prática implica que após o encontro eu faça uma escrita para meu “colaborador”, a partir das questões que me marcaram e foram significativas. Ele, por sua vez, responde com suas contrapalavras minhas inquietações.  Destaco que, nesses encontros também, a vida atravessa as nossas conversas. Pensar nas questões teóricas, desvinculadas da vida, esvazia o sentido da teoria. Por isso, as escritas que aqui socializo dizem dos pensamentos e sentimentos de dois professores que, preocupados com a formação de educadores, assumem a perspectiva bakhtiniana para pensar na educação, pela potencialidade que tem para unir a vida e a ciência.

Diários de nossos pensares...
Como referido, socializo aqui algumas escritas correspondentes ao “Diário de nossos pensares” na tentativa de compreender o sentido que damos à ideia de empoderamento e perceber o movimento instaurado no encontro com os alunos e/ou professores na busca pelo reconhecimento de “um sujeito que tem alguma coisa para dizer para o outro”.
Neste momento, trago as escritas que dizem de nossa primeira aproximação com a ideia de empoderamento, sua relação com a libertação e com o riso.

Diários de nossos pensares - 06 de abril de 2011 - Laura
Como sempre cheguei pontualmente. E como sempre, você já estava esperando.  Decidimos ficar na sala e não embaixo da árvore. Eu queria escrever, aprender, como aquele aluno que está no seu primeiro dia de aulas com muitas inquietações. O dia anterior tinha arrumado a minha bolsa com alguns livros para te mostrar, escritos dos meus alunos do projeto de extensão e papeis referentes ao pós-doutorado. Arrumar a bolsa “para ir à escola”! E ainda, fiquei pensando que eram tantas as minhas dúvidas e a necessidade de conversar sobre certas questões – conceitos – que pensei em escrever para ir “preparada”. Desisti dessa proposta. E aí, na sua sala, me acomodei na cadeira, abri o caderno e peguei a caneta... Por onde começar a conversar?
Eu acho que reiterei meu desejo de aprofundar no pensamento de Bakhtin para poder falar dele “com propriedade”, com soltura, e por isso minhas inquietações em querer ter “claros os conceitos”. [...]
Miotello, acho que eu devo ter “insistido tanto” em querer ter essa clareza, que você aí entrou com gestos: suas mãos me mostrando a amplitude do olhar bakhtiniano, suas mãos que iam entrelaçando os dedos me mostrando a ideia do “eutu”, me dizendo que a teoria de Bakhtin vale a pena ser pensada, estudada quando consideramos os acontecimentos da vida. [...]
E por que será que você falou justo para mim em libertação? Você sabe de minha inquietação com o “empoderamento”, com “a força da palavra”, ou como disse você com a possibilidade de “dominar a linguagem como forma de libertação”.
E aí você me falou: Onde é o lugar da libertação? Mas, fiquei pensando, porque Miotello está indo por esse caminho da libertação? Ele foi quem trouxe a discussão da cultura oficial e cômica popular[2],  por que tão rápido me leva a pensar na questão da libertação e dos lugares para a libertação?
Não consegui ficar quieta e retomei a questão da libertação-empoderamento dizendo que eu acreditava que “o sujeito tem que agir”. Não é “o sujeito pode agir”, pensei na ideia da responsabilidade, de assumir um compromisso. Ou como fala meu aluno Fabio, vamos “assumir ou sumir?”. Acredito que temos que assumir, como você falou, o “ato responsável”, a questão ética. [...]
Mas, você tinha guardado ainda um presente para mim, você foi cuidadosamente me levando a pensar no ambiente escolar, minha grande preocupação... E aí você lançou: “o poder bem pela liberdade que a linguagem nos dá” e ainda questionou em que medida as práticas pedagógicas geram essa liberdade. Tua questão o tempo todo foi pensar na escola [...]
Entre todas nossas falas, me chamou a atenção os diálogos constantes que fizemos com Freire. E nessa linha você apontou uma questão a ser alcançada “a escola grudada com a vida”, “a escola não tem uma prática libertadora”. [...]
E ainda minha questão central – reiterativa - é falar daquele professor em formação que se assume sujeito. E qual o sujeito que eu pretendo formar? Isso está claro para mim, mas agora, após essa conversa, vejo que esse sujeito tem que compreender a importância de “habitar o mundo do carnaval”, não só porque o riso permite a libertação, mas também por outras questões que Bakhtin fala: universalismo, igualdade, sem hierarquia....
Penso que sua insistência no nosso encontro para pensar no riso, tinha alguma intencionalidade que era quais os espaços de libertação na escola? Quais as práticas pedagógicas de libertação na escola?
Aí foi claro que talvez essa, minha primeira aproximação na pesquisa, de valorizar o “habitar o mundo da academia e o mundo escolar” importa se esse sujeito que estou formando ou (de)formando é capaz do riso, de inverter, ou subverter, ainda nas dificuldades. [...]
Finalizando o encontro ficou claro que estar no lugar de professor que forma professores implica ter a coragem de deformar ou de formar pessoas inconformadas.
A seguir as contrapalavras do professor, “colaborador”:

Diário de nosso pensares – 11 de abril de 2011 - Miotello
Cara Laura,
[...] 4.       Você recupera em sua fala uma questão que gosto demais quando penso nas propostas de Bakhtin. Ao pensar no objeto de trabalho bakhtiniano não consigo colocar nesse lugar “a língua”, ou “a linguagem”, ou “a fala”, ou qualquer dessas possibilidades. Penso sempre que o objeto dos estudos bakhtinianos é “um homem que fala com outro homem que fala”. É isso. São dois seres humanos, que viveram constituições diferentes, únicas, se constituindo consequentemente como singulares, únicos. E falam, interagem, se comunicam. Mutuamente. E falam ao mesmo tempo. Palavras e contrapalavras se recobrem. Não tem um antes e um depois. É uma ação conjunta. Esse movimento é que é forte na constituição, pois o enfrentamento é na hora, é online, e a necessidade de ajuste do que penso, do que valoro, do que reconheço como viver é nessa mesma hora.
5.       Com base na perseguição que fazes de formas de “empoderar” o outro, vejo que devemos aprofundar mais as questões que discutem “a força da palavra”. Essa questão precisa vir mais ao centro, pois então poderemos entender melhor o humano, o ideológico, o forte.
Com gratidão.
Após essa discussão, trago aqui a minha escrita em um dos encontros onde focamos fundamentalmente pensar nas práticas pedagógicas que potencializam o empoderamento dos alunos.

Diários de nossos pensares – 27 de maio de 2011 – Laura
[...] Mas você me perguntou: “como a gente atribui empoderamento para os alunos?”. [...] eu como professora de futuros professores também poderia atribuir empoderamento a partir dos conteúdos, técnicas, métodos, etc.. Eu concordei com você com essas questões “técnicas do empoderamento” mas minha questão está fortemente vinculada com a questão da fala. Aí você me perguntou: “por que me importava tanto que falassem”. E falei para você que era porque considerava que existe a pedagogia do silêncio. Falamos do processo interativo, do uso da fala em público, da importância de dominar o uso da palavra em público. Isso “muda a vida das pessoas”, você falou. [...]
Isto porque comentei para você, que desde ano passado ouço de alunos e professoras que os encontros que eu coordeno, por momentos parecem, “terapia de grupo”. Aí lembrei da vinda do professor do Canadá[3] quando falou em “Bakhtin e em terapia”... Será que estar atento ao outro, será que essa relação de exotopia, no qual o outro me complementa implica em uma ação terapêutica? Por que seria terapêutica? Porque é “curativa” de que males? É curativa de que dores na educação? Que dores na sociedade?[...] 
Por isso refletimos acerca de “processo que instauro para que as pessoas se sintam à vontade para se expressar”. [...]
Você falou: “tu permites que o outro fale”, [...] “você não comunica”, “tu conversas, interages”. [...]
Quero continuar discutindo a questão do terapêutico sim! Talvez essa ideia do terapêutico nos leve a pensar também no empoderamento.
Mas você levou a reflexão para pensar no processo integrador que posso estar favorecendo na escola/universidade, você falou que a escola não vive o tempo, nesse sentido talvez a minha proposta esteja integrando a comunidade com seu tempo; “escola para juntar com a vida”, você apontou. [...]
Como você considerou, talvez a minha prática que provoca o empoderamento seja possibilitar a “afirmação do outro”, “que o outro se enxergue como sujeito que tem coisas para dizer”, “para dizer de outras experiências”. [...]
            Como já apontado, ao trazer estas escritas quis mostrar o movimento gerado a partir de pensar juntos acerca de uma questão, o empoderamento, e das práticas que possivelmente possam criar condições para promovê-lo.

Da responsabilidade na e com a educação
A intenção de compartilhar esta experiência não é apontar conclusões, nem definir “receitas”. Uma intenção foi pensar quais os possíveis caminhos para uma formação que busca o empoderamento dos sujeitos a partir da palavra. Outra intenção foi mostrar a importância de refletir sobre as práticas que instituímos quando somos professores de futuros professores e suas implicações para pensar na educação. Qual a nossa responsabilidade nesse movimento que possibilita a formação? E como assumir a nossa responsabilidade? Qual a relação entre a vida e a ciência? Qual a relação entre a singularidade do acontecimento/do evento e seu sentido no mundo objetivado?
Algumas respostas a partir da leitura de Ponzio (2010)
A ciência, a arte e a vida adquirem unidade somente na pessoa que as incorpora na sua unidade. Mas esta ligação, como acontece muitas vezes, pode se tornar mecânica, externa, já que falta a unidade de uma dupla responsabilidade a “responsabilidade especial”, isto é, a responsabilidade que decorre da pertença a um todo, relativa a um determinado setor da cultura, a um determinado conteúdo, e a um certo papel e função, e, portanto uma responsabilidade delimitada, definida, referida à identidade reiterável do individuo objetivo intercambiável; e, de outra parte, a “responsabilidade moral”, uma “responsabilidade absoluta”, sem limite, sem álibi, sem desculpa, que por si só torna única, irrepetível o ato, enquanto responsabilidade não transferível do indivíduo. O ato é por isso, diz Bakhtin, “Um Jano bifronte”, orientado em duas direções diferentes: a singularidade irrepetível, e a unidade objetiva, abstrata (p. 21).

Enfatizo mais uma vez, a importância de uma formação que tome como ponto de partida a vida, a vivência. É a partir dessa vivência que pensamos, conhecemos, atuamos, decidimos e podemos participar do mundo, da cultura, assumindo de forma participativa o nosso lugar. Nesse sentido, talvez, pensar no empoderamento dos sujeitos, futuros professores, implique exercitar com eles o movimento deaprender no exercício vivo da palavra e da ação” (CHALUH, 2011).

Referências bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Pulo: Hucitec, 2010a.
______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. Marxismo e filosofia da linguagem.  São Paulo: Hucitec, 1999.
______. Questões de literatura e de estética. (A Teoria do Romance). São Paulo: Hucitec, 2010b.
CHALUH, Laura Noemi. Futuros professores: um processo coletivo de formação. In: GEGE. No prelo. 2011.
DAVINI, María Cristina. La formación docente en cuestión: política y pedagogía. Buenos Aires: Ed. Paidós, 1995.
PONZIO, Augusto. A concepção bakhtiniana do ato como dar um passo.  In: Bakhtin, Mikhail Mikhailovich. Para uma filosofia do ato responsável. [Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Faraco]. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. 9-37 p.


[1] Trabalho vinculado ao estágio pós-doutoral que realizo na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) com a colaboração do Prof. Dr. Valdemir Miotello no Departamento de Letras desde março de 2011.
[2] Na época, no GEGE (Grupo de Estudos de Gênero do Discurso), fizemos a leitura de “A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais” (2010).

[3] No dia 04 de maio, abaixo da árvore, o GEGE compartilhou o encontro com o professor Clive Thomson.

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