quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Luiza Alves Ribeiro

 A escrita profissional docente como ato responsivo dos professores de duas escolas cariocas

Luiza Alves Ribeiro[1]

UFRJ – FE – LEDUC

As palavras, que estruturam e dão vida a este texto, derramam-se e se espalham sem álibi na ação responsável de escrever sobre a escrita profissional docente de duas escolas cariocas. Palavras acontecidas, mas jamais adormecidas, como evento único, durante meu doutoramento e pesquisa desenvolvida no Laboratório de Estudos de Linguagem, Leitura e Escrita em Educação (LEDUC), sob a orientação da Professora Doutora Ludmila Thomé de Andrade, no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ-FE-PPGE).
A escrita profissional docente, no âmbito da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME-RJ), como foco de estudos e ponderações, corporificados e cindidos por tantas vozes, constituiu-se como o objeto da pesquisa a fim de que se estabelecessem analogias entre o Registro de Classe, documento oficial da SME-RJ, escrita de caráter obrigatório, e as anotações dos professores, expressas em cadernos pessoais. Duas escolas municipais, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, compuseram o espaço desta pesquisa durante o ano de 2009. O corpus foi coletado a partir de questionários que versavam sobre a escrita docente e que foram respondidos por professores e gestores. Para esta composição, foram realizadas, ainda, leituras e análises documentais de Registros de Classe e registros pessoais dos professores
O estudo de tipos diferenciados de registro foi articulado à perspectiva bakhtiniana de linguagem, em que o outro desempenha um papel essencial na formação do significado, revelando as estreitas relações entre o linguístico e o social (BAKHTIN, 2006). Considero que as práticas discursivas dos professores, em seus registros e anotações, são sempre produzidas a partir de outros discursos e assim são cindidas por várias perspectivas, marcadas pelos múltiplos sentidos da palavra nas produções discursivas (ANDRADE, 2004, 2009). As reflexões indicam que a construção destes textos compõe-se como um caminho para analisar (pré)conceitos sobre as identidades docentes incompletas e em constante processo de formação. Identidades forjadas na relação com os outros docentes, alunos, responsáveis e demais atores da comunidade escolar.
Na ação responsável de escrever sobre a docência em Registros de Classe e em cadernos pessoais de dois professores de duas escolas cariocas, encontramos o devir de práticas que ensejam concepções e fazeres responsivos e responsabilizantes sobre o processo ensino-aprendizagem. 
No percurso da experiência como professora e pesquisadora, a embaraçosa certeza de que as inúmeras exigências do mundo, dominado pela tecnologia e pelo capital e onde a busca por uma educação de qualidade, sob constante controle das políticas governamentais no processo de alcançar metas, imputa ao professor tarefas burocráticas (como neste caso, o preenchimento do Registro de Classe) e a necessidade de uma escrita para se dizer o que se faz e como se faz no dia a dia de sala de aula (Registros Pessoais).
Rosa (2007) ressalta a importância dos diários de classe como instrumento de registro e reflexão de professores, pois são eles (os diários) que oferecem o “material bruto” para a escrita dos demais relatórios do ofício de professor, descrevendo e analisando aspectos fundamentais da prática pedagógica.
Por outro lado, é preciso que, assim como os alunos, professores tenham bons modelos textuais para produzirem seus textos, o que sabemos nem sempre ser possível, uma vez que não raros são os descompassos encontrados entre leitura, formação docente e práticas pedagógicas (ANDRADE, 2004).
Somente uma escrita docente que surge como função de um processo que transforma o escrever em um ato responsivo, que possibilita a auto-reflexão e (re)estruturação do fazer pedagógico pode refletir-se e ir ao encontro do(s) outro(s): alunos e demais atores do processo ensino-aprendizagem.  Essa consciência encontra-se nas vozes das docentes quando escreveram, nos questionários da pesquisa, sobre a influência do professor sobre a escrita de seus alunos:
[...] normalmente você é um espelho para o seu aluno. (Questionário: Professora Joana – Escola Verbum[2])
Através dessa prática cobramos mais de nossos alunos e provamos para eles o quanto são capazes de escrever. (Questionário: Professora Lourdes – Escola Corpus)

Lamentavelmente, o professor, que é fruto de uma escola que atrofia a produção textual, raramente não apresenta dificuldade em se constituir como leitor, escritor e verdadeiramente autor de usa história. Daí serem elaboradas estratégias para dar conta de uma lacuna na formação docente. Uma delas é a utilização de Registros de Classes como prática reflexiva em alguns sistemas de ensino, como, por exemplo, na cidade do Rio de Janeiro.
Muito embora não haja garantia de eficácia nesta estratégia, é inegável que professores se reconheçam autores de seu ofício ao terem em mãos um documento que historifica o processo ensino-aprendizagem e ainda possibilita maior domínio da linguagem.
Quanto mais você escreve, mais seus pensamentos fluem sobre o assunto ou pessoa (aluno) e melhor expressa suas ideias. (Questionário: Professora Joana – Escola Verbum).
Estou sempre lendo e buscando informações e estratégias para melhorar o fazer em sala de aula. Muitas vezes já aconteceu de eu ler algo que já tenha feito antes, ou seja, em livros, revistas, há experiências que eu já tenha tentado antes. (Questionário: Professora Lourdes – Escola Corpus).

Para aquele que escreve, o desafio de se fazer entender e produzir sentidos em diferentes espaços de interlocução é ação responsiva, dialógica, mas que deve ser entendida no evento único de enunciação. Assim, professores que escrevem sobre seu fazer vivem a unicidade do evento único de sua existência (BAKHTIN, 1993).
Larrosa (2004) dialoga com Barthes (1972) e constitui um universo de sentidos sobre o ato de escrever em um mundo onde nos encontramos submersos em linguagem:
[...] aquele que quer escrever, deve saber que começa um largo concubinato com uma linguagem que é sempre anterior. Portanto, o escritor não tem em absoluto que “arrancar” um verbo do silêncio, como se diz nas piedosas hagiografias literárias, mas o inverso, e quanto mais dificilmente, mais cruelmente e menos gloriosamente, tem que arrancar uma palavra segunda do envilecimento das palavras primeiras que lhe proporciona o mundo, a história, sua existência, em outros termos, um inteligível pré-existente nele, já que ele vem a um mundo cheio de linguagem, e que não fica nada real que não seja classificado pelos homens.  (BARTHES, 1972 apud LARROSA, 2004, P. 318)

Dar a escrever... talvez, como ato responsivo de quem tampouco “arranca” palavras do silêncio, mas que extirpa palavras outras do esquecimento das primas palavras, povoam o universo escolar como se este fosse o único lugar em que se aprende a ler e a escrever. Nestes espaços, onde alunos leem e escrevem, também os professores são obrigados a “arrancar” um verbo de tantos outros verbos e se dizerem profissionalmente sobre o que fazem alunos e eles mesmos no cotidiano da sala de aula. Palavras que produziram e ainda compõem discursos polifônicos em palavras recebidas e dadas, dadas a escrever... talvez?
Neste estudo, a busca incansável de fugir das teias da reificação nas reflexões sobre as escritas docentes, entendendo a natureza dialógica da consciência e da própria vida humana, consideramos que a “única forma adequada de expressão verbal da autêntica vida do homem é o diálogo inconcluso” (BAKHTIN, 2003, p. 348).
                Retomando o papel dos outros, para quem se constroi o enunciado, levando em conta as atitudes responsivas e em função dos quais ele é criado (BAKHTIN, 2003), abordamos a questão do endereçamento das escritas dos professores das duas escolas. Sentimentos de angústia, receio, dificuldade e facilidade foram soantemente denunciados pelas respostas dadas, no questionário, pelos sujeitos da pesquisa.
Muitas destas respostas apontaram caminhos para se entender as funções e os usos da escrita pelos atores escolares (professores e alunos). Também o endereçamento, para quem se escreve e o que se escreve na e para a escola, tem papel determinante na constituição dos enunciados. Assim, a cada situação de uso da escrita pelos docentes, vinculam-se práticas, crenças, formatações e deformações, em função de esperas responsivas e compreensivas de outras vozes, outros sujeitos, em diferentes tempos e espaços.
Sobre a escrita normatizada e formatada dos Registros de Classe, as docentes imperiosamente reconheciam sua função e importância no processo de documentar e até mesmo as resguardar de possíveis questionamentos e intervenções de uma suposta “elite de plantão” e dos responsáveis pelos alunos. Entretanto, as condições de realização de uma escrita, imposta e endereçada a uma autoridade do sistema de ensino, atolavam-nas numa areia movediça, sem tempos e nem escolhas, fazendo com que as professoras deixassem para trás anotações pessoais que poderiam se configurar como possíveis instrumentos para que saíssem do atoleiro em que se encontravam.
Passivamente, as respostas dos sujeitos da pesquisa aos questionários denunciaram certa apatia, como se nada pudesse ser feito para alterar a exigência burocrática do preenchimento dos Registros de Classe. Este consentimento se rebelava, no entanto, quando este documento não era preenchido. Suas linhas, vazias e silenciadas das vozes das professoras, denunciavam não só a ausência de tempos e espaços para realizar tal determinação, mas também se configurava como forma de resistência muda à tarefa imposta pela SME-RJ.
Uma identidade de professor, resistente às imposições das políticas governamentais, expressou seu descontentamento através de uma entonação expressiva e irônica em um dos enunciados do questionário. A professora Sônia, da Escola Corpus, como a denunciar deformações no corpo da escola e do próprio sistema de ensino, nos quais trabalha, sugeriu que o Registro de Classe fosse mais simples como o velho registro que se vendia em papelarias e acrescentou, entre parênteses, um pedido de permissão para rir da própria sugestão e/ou até mesmo do Registro de Classe, tão pouco importante como aquele outro, facilmente encontrado em lojas e papelarias. Este elemento expressivo configura-se como uma peculiaridade constitutiva do enunciado, a relação valorativa do falante com o elemento semântico-objetal do enunciado (BAKHTIN, 2003).
Se acaso as intenções da SME-RJ, ao elaborar o Registro de Classe, estavam voltadas para uma prática de formação continuada reflexiva dos professores, dentro de uma escola organizada em Ciclos de Formação, tal não fora este o efeito. Antes, os registros normatizados se configuraram como uma tarefa burocrática opressiva e impossível de ser realizada, de maneira autoral e reflexiva sobre o fazer de sala de aula, pelos professores, regentes de turmas com mais de trinta alunos, em escolas, inseridas em contextos de extrema pobreza material e cultural, no interior de espaços violentos e em condições subumanas de sobrevivência.
Para tecer as tramas (in)conclusivas deste texto, enlaçamo-nos junto aos fios das escritas pessoais e burocráticas de professores, um dia também vivenciadas pelo sujeito pesquisador e agora objeto de estudo deste mesmo sujeito, no esforço exotópico de conhecer a si mesmo e ao outro, na imagem pantográfica do ponto que se move e provoca mundanças em todos os demais pontos a ele interligados (ANDRADE, 2009).
A pesquisa inacabada e inconclusa aponta para uma escrita dos professores não só forma identidades docentes, mas também é por elas formada. A escrita, como atividade que diz da ação dos sujeitos submetidos, subjugados e encharcados por chuvas de formação (Idem), modismos e imposições de práticas, enredados por histórias de vida pessoal e profissional, escrita com pretensas palavras em acabamento, mas não de acabamento, infindas, como as identidades docentes, tecem a trama da responsividade da ação docente. Palavras outras, falantes, pensantes e continuadoras da utopia que move os educadores que ainda acreditam que o encontro com o outro é, na verdade, o encontro de si mesmos.

Referências bibliográficas
AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo: Musa Editora, 2004.
ANDRADE, L. T. de. Professores leitores e sua formação – transformações discursivas de conhecimentos e de saberes Belo Horizonte: Ceale/Autêntica, 2004.
________________. A construção de alteridades universitárias em interlocuções na formação continuada de professores alfabetizadores no Rio de Janeiro. In: Anais do V Simpósio Internacional de Estudos de Gêneros Textuais. Caxias do Sul, 2009. CD-ROM.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
___________. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006.
___________. Para uma filosofia do ato (1919/1921). Toward a Philosophy of the Act. Transleted by V. Liapunov. Austin: University of Texas Press, 1993.
LARROSA, J. Linguagem e educação depois de Babel. Tradução Cynthia Farina. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
ROSA, M. da C. de C. “A escrita dos professores: instrumento de reflexão sobre a prática pedagógica” in PRADO, G. de V. T. e SOLIGO, R. (Orgs.) Porque escrever é fazer história. Revelações subversões superações. Campinas: Alínea, 2007.


[1] Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora colaboradora do Laboratório de Estudos de Linguagem, Leitura, Escrita e Educação (LEDUC/UFRJ).

[2] Os nomes Escola Verbum e Escola Corpus, assim como os nomes dos professores são fictícios a fim de que se assegure a posição responsiva e comprometida do sujeito pesquisador com  os sujeitos pesquisados.

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