quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Flavia Faissal de Souza, Ana Luiza Bustamante Smolka

Notas para análise do desenvolvimento do corpo com deficiência no contexto da educação inclusiva: contribuições bakhtinianas
Flavia Faissal de Souza - ffaissal@unicamp.br
Ana Luiza Bustamante Smolka- asmolka@unicamp.br
Faculdade de Educação/UNICAMP
CNPq/FAPESP

Interessados na constituição social do corpo a partir da perspectiva histórico-cultural é objetivo da tese de doutorado analisar como as políticas de educação inclusiva vão impactando o corpo em seu processo de desenvolvimento, considerando a implementação e a incidência da mesma nas práticas escolares: a inserção do aluno com deficiência nas práticas pedagógicas (sobretudo o lugar que vai ocupando) e a relação do corpo com deficiência com seus pares e professores.
Neste contexto as idéias do Círculo de Bakhtin tem sido fundamental para a construção teórico-metodológica do estudo. Assim, o foco desta apresentação é colocar em discussão como os conceitos de corpo signo, acabamento estético e o ato responsável podem contribuir para conceber e analisar o desenvolvimento de corpos signos com deficiência no contexto das políticas de educação inclusiva.
Sobre as políticas de educação inclusiva
As questões em torno da pessoa com deficiências, de suas possibilidades de desenvolvimento e do acesso aos direitos básicos humanos entraram, nas últimas décadas, na agenda dos órgãos internacionais. Sobretudo, quando os estudos sociais começam apontar que a deficiência pode ser compreendida como causa e como conseqüência da vida em situação de pobreza (WB, 2010; UNPD, 2010; WHO, 2010). Dentre as várias estratégias políticas que vem sendo traçadas na tentativa de garantir os direitos básicos às pessoas com deficiência, as políticas de educação inclusiva, tem como eixo norteador o acesso a educação básica (UNESCO, 1994), visto que para estes órgãos a educação é a chave para o desenvolvimento.
Contudo, podemos apontar que o cenário contemporâneo brasileiro de implementação dessas diretrizes políticas é marcado por profundas contradições. Essas vão desde a obrigatoriedade legal da implantação de sistemas de ensino inclusivos (CORDE/SDH/BRASIL, 2007; SEESP/MEC, 2007); o descompasso entre o avanço do corpo de leis que regem as políticas de educação inclusiva no Brasil e as condições concretas de implementação que impactam negativamente as práticas pedagógicas (GÓES, LAPLANE, 2003; BAPTISTA, JESUS, 2009; KASSAR, 2010); bem como o papel social historicamente constituído da pessoa com deficiência (JANUZZI, 2004).
Sobre o contexto do estudo
Nosso estudo esta inserido em uma pesquisa coletiva que investiga as condições de desenvolvimento humano e as relações de ensino na contemporaneidade, cujo campo empírico é uma escola pública de periferia do município de Campinas/São Paulo. O lugar de nossas indagações específicas foi uma sala de aula de quinto ano do ensino fundamental, composta por 35 alunos, sendo 03 com deficiências e muitos com grandes dificuldades no processo de ensino e aprendizagem.
O estudo tem inspiração na pesquisa etnográfica na escola (EZPELETA, ROCKWEEL, 1989); no método instrumental/histórico-genético (VIGOTSKI, 1991); no campo da antropologia e da sociologia (MAUSS, 2003; BOURDIEU, 2006); no campo epistemológico, da ética e da estética (BAKHTIN, 1995, 2003, 2010).
No decorrer de um ano letivo de 2009, freqüentamos, duas pesquisadoras, a sala de aula do 5o ano A duas vezes por semana. Os registros do vivido em campo foram realizados por meio de videogravações, audiogravações, diário de campo, fotografias, entre outros. Do material empírico analisado trazemos para este trabalho uma situação que diz respeito as intervenções junto a um aluno chamado Diego[1]

Cena cotidiana
Era mês de setembro, Diego já não mais queria permanecer em sala de aula. Suas saídas para ir ao banheiro, beber água ou buscar material na secretaria eram constantes.
Dia 16.09.09. Diego não está na sala, nem na escola. Já no fim da manhã, em sala de aula, ao discutir com os alunos a questão de como os adultos controlam as crianças pelo medo, por motivo da leitura da história da Chapeuzinho Vermelho, professora  relata a todos os alunos e a pesquisadora o motivo da ausência de Diego:

(00:52:42) _ Olha lá o nosso coleguinha hoje. O Diego está suspenso hoje. Eu não sabia disso, é uma coisa que a gente precisava ter atentado, que aqui na sala ele é muito tranqüilo. Mas, ele põe esse pé para fora daqui [...] ele bate em crianças, ele sai batendo. E, ele ontem pegou a lixeira que estava muito cheia e disse que ia lá fora esvaziar a lixeira. Eu disse para ele jogar o lixo fora e voltar. Mas, eu não me atentei que já tinham crianças no intervalo, dos pequenos. Aí ele jogou fora [pausa] e a Bia (professora de educação especial) me falou que isso era comum dele fazer [...]. Parece que ele está sentindo que está crescendo e soltando, meio para fora, a violência. E, aqui ele é tranquilo(Vídeo T5A 77, 2009)

Diego, aluno diagnosticado com deficiência mental, freqüentava a escola há quatro anos. Em relação às intervenções pedagógicas, no ano de 2009, Diego era assistido pela professora de sala de aula cotidianamente e pela professora de educação especial, uma hora/aula por semana. As atividades realizadas eram: recorte de imagens e colagem das mesmas em seu caderno; cópia de letras e números em livros de atividades e atividades em cartilhas para alfabetização. Como não houve, no decorrer do ano, avaliação ou reformulação da proposta pedagógica, Diego passava quase todo o tempo na escola sozinho reiteradamente buscando imagens, na expectativa que mais tarde as professoras iriam ensiná-lo a nomear as imagens, que elas iriam “passar lição”.
Sua rotina ao chegar à sala de aula era sempre a mesma: limpava seu espaço e organizava o seu material. Diego não gostava quando algum outro aluno invadia seu espaço. Durante a aula, inúmeras vezes no decorrer do dia interrompia a aula, tanto para pedir para sair da sala, em outros para pedir atenção e ajuda nas suas lições.
Em relação aos seus pares, poucas vezes presenciamos Diego interagindo com os outros alunos, mas perguntava todo tempo quem eram seus amigos. Um dia chegou a questionar a uma estagiária: “_ Amigo? Eu?”. Não raro também vivenciamos situações nas quais seus pares debochavam de sua forma de falar, afetada por uma dificuldade na dicção. Ele também sempre nos questionava: “_ Eu tonto?”.

Sobre o desenvolvimento do corpo signo com deficiência no contexto da educação inclusiva
Nota 1: Corpo signo
O pressuposto assumido é a natureza social do desenvolvimento humano  e da constituição histórico-cultural do corpo signo (BAKHTIN, 1993, 1995; VIGOTSKI 2000; SMOLKA 2000; VIGARELLO 1978; DETREZ, 2002; MARZANO, 2011).
Bakhtin (1995) nos fala do corpo signo. Organismo e mundo encontram-se no signo. O corpo é signo, uma arena de lutas sociais, pois traz em seus significados índices de valores contraditórios, enquanto se constitui na disputa de valores ideológicos. Na dinâmica do mundo, nas relações interpessoais, corpos interagem afetando o outro e afetando-se. O corpo é polissêmico, é uma realidade histórica, mutável e multifacetada, imerso nas relações, se desenvolve no limite da ideologia e da subjetividade, no/pelo diversos papeis sociais desempenhados.
A noção bakhtiniana de signo ideológico nos faz redimensionar a noção de constituição de todo corpo físico, já que tornar-se signo é ir além do corpo físico.

Nota 2: O (in)acabamento estético
Bakhtin (2003) nos aponta o efeito do outro no sujeito ao tratar do (in)acabamento estético como um acontecimento semiótico que só o outro pode dar ao sujeito, pois, por ocupar uma posição externa ao seu eu, ele pode lhe olhar de fora, e o sujeito só pode se olhar de dentro dele próprio. Neste ato est(ético) de acabamento do lugar de onde o outro não pode se ver, é produzido um conhecimento sobre o sujeito observado, a partir do como e do que foi possível de ser incorporado por ele, a partir de sua interpretação do (in)acabamento que o outro lhe deu. Nesse sentido o acabamento estético, processo intermitente, ocorre na tensão entre ao menos dois pontos de vista (o eu e o outro), na experiência com o outro, no ato ético (TEZZA, 1997, AMORIM, 2006).
As considerações acima listadas levam-nos a considerações também sobre as possibilidades de expressividade do corpo pelo/no discurso, pelo/no movimento. E dos possíveis caminhos interpretativos pelo outro. Neste sentido, Clot (1999) nos chama atenção para as marcas culturais que tornam possíveis o (in)acabamento estético do movimento corporal do outro.

Nota 3: O ato responsável
Amorim (2009, p.22) afirma que “O ato é responsável e assinado: o sujeito que pensa um pensamento assume que assim pensa face ao outro, o que quer dizer que ele responde por isso [...] O ato é um gesto ético no qual o sujeito se revela e se arrisca inteiro.” O sujeito pensa e se compromete com o que pensa a partir do lugar único, que vê e que age. Desta forma, Sobral (2009) afirma que os sentidos morais gerais vão no ato adquirindo sentidos contextuais específicos, na relação dos sujeitos envolvidos.
Sobral (2005, p.21) nos descreve que, para Bakhtin, o ato é o agir humano em todas as suas dimensões, é a ação realizada por um sujeito situado e responsável, no qual é atribuído um sentido no próprio ato. E, ainda, descrevendo o ato responsável afirma que este “[...] envolve o construído do ato, seu processo, e, unindo-os, a valoração/avaliação do agente com respeito a seu próprio ato, vinculada com o pensamento participativo”.
Ainda neste texto o autor traz a idéia de ato-feito, situando o agir humano, donde a vida é “[...] um evento unicorrente de realização ininterrupta de atos-feitos: os atos e experiências que vivo são momentos constituintes de minha vida, que é assim uma sucessão ininterrupta de atos” (SOBRAL, 2005, p.21).
Bakhtin (1995) ao tratar do ato ético e responsável, afirma que o ato se desdobra na experiência em si e na sua representação, afirmando que ele se unifica à proporção que se preocupa, por um lado, com a objetividade do domínio cultural e, por outro, com a “[...] unicidade irrepetível da vida realmente vivida e experimentada”.
Assumimos que o corpo signo vai se desenvolvendo na incorporação de sentidos e significados antes postos em no mínimo entre dois sujeitos (VIGOTSKI, 2000). Contudo, o que é incorporado do vivido/experenciado “[...] é resultante daquilo que impacta e é compreendido, significado, pela pessoa. [...] Não existe experiência sem significação. [...] Falar de experiência é falar de corpo/sujeito afetado pelo outro/signo [...] É falar da vida impregnada de sentido” (SMOLKA, 2006, p. 107).
Algumas indagações
Diego é um aluno diagnosticado com deficiência intelectual. Embora, sem marcas em seu corpo físico, seu modo de agir, sua forma de falar marcam as possibilidade de interpretar e se relacionar com este corpo signo.
No decorrer de todo ano letivo Diego esperou pela lição. O que foi oferecido enquanto proposta pedagógica a este aluno? Reiteração da vida cotidiana. Diego indagava pelos amigos. Alguns alunos debochavam de sua forma de falar. O aluno raramente interagia com seus pares. O que foi proposto, enquanto proposta político-pedagógica, para ser possível a constituição de outros sentidos e significados a este corpo signo com deficiência? A manutenção de valores morais gerais.
O que as docentes esperam com a suspensão de Diego? Como a suspensão o afeta? E, como afeta as docentes? A escola, enquanto instituição pública de ensino lança mão de uma estratégia para lidar com o outro, com as questões da diversidade: suspende o que não consegue lidar. Foi a forma encontrada para educar Diego.
Nossa intenção nesse texto é problematizar e trazer para discussão conceitos e material empírico com vistas a contribuir para reflexões acerca da responsividade do  ato de educar.

REFERÊNCIAS
AMORIM, M. Cronotopia e exotopia. In: BRAIT, B. Bakhtin: outros conceitos-chaves. São Paulo: Contexto, 2006. 263p.
____. Para uma filosofia do ato: “válido e inserido no contexto”. In: BRAIT, B. Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009.
BAKHTIN, M (Volochinov) Marxismo e Filosofia da Linguagem. 7ª ed. São Paulo: HUCITEC, 1995. 196p.
BAKHTIN, M. A cultura popular na idade média e no renascimento. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Ed. UNB, 1993.
____. O autor e o herói. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4a ed. -São Paulo: Martins Fontes, 2003. 476p.
____. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
BAPTISTA, C.R., JESUS, D.M. (org.) Avanços em políticas de inclusão: o contexto da educação especial no Brasil e em outros países.  Porto Alegre: Editora Mediações, 2009a. 232p.
BOURDIEU, P. O camponês e seu corpo. Revista Sociologia Política. Curitiba, v.26, p. 83-92, jun, 2006.
CLOT, Y. Le geste est-il transmissible? 10eme Entretien de la Villette: Apprendre autrement aujourd’hui, Cité des Sciences, Paris, 1999.
CORDE/SDH/BRASIL. Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência e Protocolo facultativo. Brasília: SICORDE, 2007. 48p.
SEESP/MEC. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, 2007. http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/politica.pdf. Acesso em 19 Dez 2007.
DETREZ, C. La construction sociale du corps. Paris: Éditions du Seuil, 2002. 
EZPELETA, J. , ROCKWELL, E. Pesquisa Participante. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1986.
GÓES, M. C. R.; LAPLANE, A. L. F. (orgs.) Políticas e práticas de educação inclusiva. Campinas: Autores Associados, 2004. 165p.
JANNUZZI, G. M. A educação do deficiente no Brasil: dos primórdios ao início do século XXI. Campinas: Autores Associados, 2004. 243 p.
KASSAR, M.C.M. (org.) Diálogos com a diversidade: desafios da formação de educadores na contemporaniedade. Campinas: Mercado das Letras, 2010. 276p.
MARZANO, M. La philosohie du corps. Paris: PUF, 2011.
MAUSS, M. As técnicas do corpo. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosicnaif, 2003.
SMOLKA, A. L.  O (im)próprio e o (im)pertinente na apropriação das práticas sociais. Cadernos Cedes: Relações de ensino: análises na perspectiva histórico-cultural. Campinas, n.50, 26-40, 2000.
SMOLKA, A. L.  Experiência e discurso como lugares de memória: a escola e a produção de lugares comuns. Pro-posições: Temas e tendências na perspectiva histórico-cultural. Campinas, v.17, n.2(50), 99- 118, maio/ago, 2006.
SOBRAL, A. Ato/atividade e evento. In: BRAIT, B. Bakhtin: conceitos chaves. São Paulo: Contexto, 2005.
____. O conceito de ato ético de Bakhtin e a responsabilidade moral do sujeito. BIOETHIKOS. São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 3(1), p.121-126, 2009.
TEZZA, C. A construção das vozes no romance. In: BRAIT, B. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. 385p.
UNESCO. The Salamanca Statement and Framework for action on Special Needs Education. Paris: UNESCO, 1994.
UNPD. Discussion Paper  Markets, the State and the Dynamics of Inequality: The Case of Brazil New York, 2010.
VIGARELLO, G. Le corps redresse. Paris: Jean-Pierre Delarge, 1978.
VYGOTSKI, L.S. El significado histórico de la crisis de la Psicología - Obras Escogidas - v.I, Madrid: Visor, 1991, p.496.
VIGOTSKI, L.S. Manuscrito de 1929. Educação & Sociedade, Campinas:Cedes, ano XXI, n.71, p.21- 44, 2000.
WHO. World Health Organization- Disabilities.  http://www.who.int/topics/disabilities/en/. Word report disability concept note 2010.



[1] Nome fictício.

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