quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Célio da Silveira Júnior, Maria Emília Caixeta de Castro Lima, Andréa Horta Machado

Para uma leitura responsiva: mediação como responsabilidade de todos os professores
Célio da Silveira Júnior – celiosilveirajr@yahoo.com.br – FAE/UFMG
Maria Emília Caixeta de Castro Lima – mecdcl@uol.com.br – FAE/UFMG
Andréa Horta Machado – ahortamachado@gmail.com – COLTEC/UFMG

A leitura desempenha papel fundamental nas relações de ensino, especialmente no que se refere à aprendizagem de ciências nas salas de aula. Por isso, a compreensão de um texto não pode ser encarada como fruto da simples apreensão de significados literais, um processo de decifração, e nem se pode partir do princípio de que saber ler é o suficiente para a interpretação de um texto. Deve-se afastar o caráter de simplicidade normalmente atribuído à leitura, qual seja, o de habilidade a ser adquirida em determinada etapa da escolaridade, independentemente dos conhecimentos específicos envolvidos. A leitura no ensino de ciências, recurso habitualmente utilizado nas práticas escolares, até pouco tempo parecia não exigir uma reflexão a respeito, constatação que se faz frente à maneira como a atividade era (ou é) proposta. Situação essa particularmente preocupante, considerando que os conteúdos envolvidos são relevantes, e os textos de ciências se mostram difíceis ao serem utilizados no processo de aprendizado. Existe algo “estranho”, contraintuitivo, no discurso da ciência, que é difícil de ser assimilado (Espinoza, 2010; Marcuschi, 2005).
Neste sentido, Paula & Lima (2010) alertam que a leitura não pode se restringir à busca de informações em um texto:
Quando o professor restringe o processo de ler ao ato de acessar informações em um texto, o papel do estudante fica, por sua vez, limitado em termos de leitura e interpretação. Nesse caso, o professor deixa de lado a complexidade das práticas de leitura vivenciadas nas salas de aula de ciências e o caráter problemático dos atos de interpretação de textos escritos. Assim, outra concepção de leitura de textos que circulam ou poderiam circular nas salas de aula de ciências é necessária.

Essa outra concepção é a de que na leitura, uma ação de linguagem, ocorre um complexo processo de produção de sentidos, determinado pelos aspectos histórico-sociais nos quais o texto, seu autor e seu leitor encontram-se situados. Assim:
(...) o texto (à diferença da língua como sistema de meios) nunca pode ser traduzido até o fim, pois não existe um potencial texto único dos textos. O acontecimento da vida do texto, isto é, a sua verdadeira essência, sempre se desenvolve na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos. (...) Ver e compreender o autor de uma obra significa ver e compreender outra consciência, a consciência do outro e seu mundo, isto é, outro sujeito (“Du”). Na explicação existe apenas uma consciência, um sujeito; na compreensão, duas consciências, dois sujeitos. (BAKHTIN, 2010).

A produção de sentidos, assim, revela seu caráter essencialmente dialógico, pois “a compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a enunciação assim como uma réplica está para outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra” (Bakhtin, 2006). Esse movimento dialógico, para Castro (2010), é rico pela sua natureza responsiva despertada no sujeito, de forma que construir sentidos significa compreender ativamente.
Os sentidos produzidos na leitura dependem do contexto, mas não se limitam a ele. Dão-se em condições determinadas, cuja especificidade está em serem construídos em confrontos de relações sócio-historicamente fundadas e permeadas pelas relações de poder. Assim, têm historicidade, têm um passado e se projetam num futuro. As leituras não podem, então, ser vistas como práticas que resultam em uma produção de sentido transparente, em que se podem avaliar as produções de sentido como adequadas ou não (Orlandi, 2005; Assunção, 2007).
Como a leitura não é ato solitário (Soares, 2005), e representa a construção de sentidos em um encontro de vozes, ou, segundo Paula & Lima (2010), um encontro de, no mínimo, duas consciências e horizontes conceituais do autor e do leitor, revela-se a importância da mediação intencionalmente planejada do professor antes, durante e após a situação de leitura. Tal mediação tem como objetivo conhecer os sentidos atribuídos pelos estudantes e fortalecer aqueles cientificamente consolidados. O professor, portanto, é responsável, em sala de aula, por criar condições para que seus alunos ingressem nas práticas sociais de leitura como atribuição de sentidos. Nesse sentido, Assunção (2007) diz que:
No jogo das práticas de leituras escolares, portanto, há de se pensar nessas subjetivações que se colocam em interação: a do sujeito-autor que, ao produzir seu texto, se filia a uma formação discursiva e, a partir dela, produz sentido; a do sujeito-professor que, como mediador instituído pela escola, cumpre a função não só de organizar mas também de disciplinar as leituras possíveis e, no sentido de Foucault (1998), cumpre sua função de comentarista, garantindo as leituras que devem ser reproduzidas; e, por fim, a do sujeito-leitor – no caso específico que estamos considerando, o sujeito-leitor-aluno – que, inserido em uma prática de leitura escolar, deve negociar sua produção de sentido com aquela produzida na e pela escola. 

Dessa forma, a leitura é concebida como uma prática de construção de sujeitos. Uma prática que deve levar em conta a possibilidade de elaboração de posições críticas frente aos textos escritos. Aqueles que formam leitores têm, portanto, responsabilidade política, pois a leitura é, fundamentalmente, processo político. Com isso, a escola deve ter dentre suas responsabilidades a formação de bons leitores e produtores de texto como forma de desenvolver a autonomia intelectual e afetiva dos estudantes, o que acaba se tornando compromisso e responsabilidade de professores de todas as áreas. (Paula & Lima, 2010; Assunção, 2007; Kleiman, 2007; Soares, 2005).
Então, revela-se assim a possibilidade de incluir o processo da leitura nas aulas de ciências como forma de promover a tomada de posição, dos sujeitos se dizerem na relação com os sentidos possíveis a partir da leitura de textos em ciências. O que se propõe é uma “leitura de cunho transformador”, “instrumento de conscientização” (Silva & Zilberman, 2005), de forma que, a partir da promoção da compreensão do texto, o que implica necessariamente em uma responsividade (Fiorin, 2010), contribuir para que os jovens entendam o que é ciência:
O que se pretende, por meio da educação em ciências, é promover novas formas de ver o mundo, refletir sobre fenômenos e analisá-los, ir além das aparências, combinar evidências e inferências em atividades de modelagem de aspectos da realidade que se procura melhor compreender para intervir e agir. Enfim, a meta fundamental da educação científica consiste em fazer com que os jovens entendam o que é ciência, quais as “regras” desse jogo, para que possam se beneficiar, pessoal e socialmente, da racionalidade científica (AGUIAR JR., 2001).

São, portanto, muitas as ‘respostas responsáveis’ que a educação deve representar.  As ações desenvolvidas nas relações de ensino devem sempre estar constituídas pela responsividade e pela responsabilidade, no sentido de ações que representem respostas e tomadas de posição, respectivamente. Assim:
Uma teoria precisa entrar em comunhão não com construções teóricas e vida imaginada, mas com o evento realmente existente do ser moral – com a razão prática, e isso é responsavelmente completado por quem quer que se conheça, na medida em que o ato de cognição esteja incluído como minha ação, com todo o seu conteúdo, na unidade da minha responsabilidade, na qual e pela qual eu realmente vivo – executo ações. (BAKHTIN, 1993).
Certamente a tranqüilidade da abstração poderia retornar se definíssemos a responsabilidade como estrutura preexistente, um a priori a ser realizado, previsto e completado pelo ato responsável. Não é o que faz o autor [referindo-se a Bakhtin]. Ao contrário, para ele a responsabilidade é um objetivo a ser conquistado, alcançado. (...) Não temos álibi para a existência porque não temos álibi para o lugar único e irrepetível que ocupamos. Nesse sentido, responsabilidade/respondibilidade abarca, contém, implica necessariamente a alteridade perante a qual o ato é uma resposta àqueles que virão. Somos cada um com o outro na irrecusável continuidade da história. Buscar nos eventos, nas singularidades, nas unicidades dos atos dessa caminhada como se realizam as “respostas responsáveis” é um modo de reencontrar os deslocamentos imperceptíveis na construção continuada de valores, dos sentidos que regem, mas que se fazem e desfazem na existência. (GERALDI e outros, 2007).

Por fim, cabe indicar que responsabilidades/respondibilidades conduzem nossas intenções em uma investigação em curso, por meio da qual pretendemos verificar as relações que estudantes do nível fundamental do ensino público estabelecem na leitura de textos didáticos sobre ligações químicas, e que reflexos isso traz para o tratamento a ser dado ao tema no ensino de ciências.
A proposta também é a de que as ações sejam desenvolvidas de forma colaborativa por nós, pesquisadores, e a professora responsável pela turma na qual a pesquisa será realizada. Dessa forma, pretendemos contribuir para o conhecimento da área, onde nossos levantamentos têm indicado a carência de estudos no que dizem respeito ao uso de leitura de forma sistematizada para a aprendizagem de ciências; contribuir para a formação inicial e continuada de professores, onde normalmente se verifica a falta de oportunidades para se refletir sobre a complexidade envolvida nos processos de leitura; e, na condição de estudantes e professores de redes públicas de ensino, contribuir para a formação dos sujeitos envolvidos, o que nos inclui também, como resposta e responsabilidade aos/com os sujeitos que pertençam também a uma rede de ensino dessa natureza.

Referências:
AGUIAR JR., Orlando. Mudanças conceituais (ou) cognitivas na educação em ciências: revisão crítica e novas direções para a pesquisa. Revista Ensaio, V3(1), 2001.
ASSUNÇÃO, Antônio L. Sob o regime da produção de sentido: reflexões sobre a produção da leitura in MARI, Hugo; WALTY, Ivete; FONSECA, Maria Nazareth S. (orgs.). Ensaios sobre leitura 2. Editora Pucminas: Belo Horizonte, 2007.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato. 1993.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Editora Hucitec: São Paulo, 2006.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Editora WMF Martins Fontes Ltda: São Paulo, 2010.
CASTRO, Ana Paula P. A entrevista dialógica como instrumento para pesquisar a escrita online na aprendizagem do professor em formação: reflexões iniciais in FREITAS, Maria Teresa de A.; RAMOS, Bruna S. (org.). Fazer pesquisa na abordagem histórico-cultural: metodologias em construção. Ed. UFJF : Juiz de Fora, 2010.
ESPINOZA, Ana. Ciências na escola: novas perspectivas para a formação dos alunos. Editora Ática: São Paulo, 2010.
FIORIN, José L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. Ed. Ática: São Paulo, 2010.
GERALDI, João W.; BENITES, Márcia; FICHTNER, Bernd. Transgressões convergentes. Ed. Mercado das Letras : Campinas, 2007.
KLEIMAN, Ângela B. Formando leitores críticos in MARI, Hugo; WALTY, Ivete; FONSECA, Maria Nazareth S. (orgs.). Ensaios sobre leitura 2. Editora Pucminas: Belo Horizonte, 2007.
MARCUSCHI, Luiz A. Leitura e compreensão de texto falado e escrito como ato individual de uma prática social in ZILBERMAN, Regina; SILVA, Ezequiel T. da. (orgs.). Leitura: perspectivas interdisciplinares. Editora Ática: São Paulo, 2005.
ORLANDI, Eni P. O inteligível, o interpretável e o compreensível in ZILBERMAN, Regina; SILVA, Ezequiel T. da. (orgs.). Leitura: perspectivas interdisciplinares. Editora Ática: São Paulo, 2005.
PAULA, Helder de F.; LIMA, Maria Emília C. C Formulação de questões e mediação da leitura. Investigações em Ensino de Ciências, V15(3), PP. 429-461, 2010.
SOARES, Magda B. As condições sociais da leitura in ZILBERMAN, Regina; SILVA, Ezequiel T. da. (orgs.). Leitura: perspectivas interdisciplinares. Editora Ática: São Paulo, 2005.
ZILBERMAN, Regina; SILVA, Ezequiel T. da. Pedagogia da leitura: movimento e história in ZILBERMAN, Regina; SILVA, Ezequiel T. da. (orgs.). Leitura: perspectivas interdisciplinares. Editora Ática: São Paulo, 2005.

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