quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Elzicléia Tavares dos Santos

Aproximações iniciais de uma pedagoga com o Bakhtin de Filosofia do Ato
Elzicléia Tavares dos Santos[1]
(PPGE-UFJF/UNEB)

Magda Lemonnier recorta palavras nos jornais, palavras de todos os tamanhos e as guarda em caixas. Numa caixa vermelha guarda as palavras furiosas. Numa verde, as palavras amantes. Em caixa azul, as neutras. Numa caixa amarela, as tristes. E numa caixa transparente guarda as palavras que têm magia.
Às vezes, ela abre e vira as caixas sobre a mesa, para que as palavras se misturem do jeito que quiserem. Então, as palavras contam para Magda o que acontece e anunciam o que acontecerá.
 Eduardo Galeano[2]
           
Gostaria de ter caixas como as de Magda Lemonnier com  palavras guardadas que pudessem ser misturadas e num piscar de olhos, transformadas num texto escrito.  Que palavras escolher, que partes privilegiar, que palavras deverão permanecer na caixa?  Que palavras recorrer para trazer minhas contrapalavras às discussões da teoria de Bakhtin de uma aula sobre a obra “Para uma Filosofia do Ato”?
            Para que o leitor compreenda de onde eu falo, preciso esclarecer que esse texto nasce de uma situação muita específica:  um grupo de cinco pessoas reunidas durante um semestre em uma pequena sala nos corredores da FACED/UFJF nas quartas à tarde para se aventurarem na leitura do livro “Para uma Filosofia do Ato” de Bakhtin.  A cada aula um de nós tinha o compromisso de trazer suas contrapalavras sobre o lido e o discutido para  a próxima aula[3]. Ao reler esse texto, pensei em trazê-lo para dialogar com os escritos de Bakhtin no I Encontro de Estudos Bakhtinianos (IEEBA).  Assim, no primeiro momento trago o escrito sobre a aula com o relato da minha aproximação com os trechos iniciais do livro  “Para uma Filosofia do Ato” e depois falo  de como as palavras do autor me tocam no ato de pesquisar.
            Pensei em fazer uma síntese das ideias discutidas, mas a escolha das palavras me levaram a substituir o termo síntese, pelo termo aproximação no sentido de me tornar próxima, de  iniciar uma relação com o autor.  Como em todo início de uma nova relação, sou tomada por uma enorme ansiedade e insegurança para dialogar com os escritos de Bakhtin.   Mas, é o próprio Bakhtin que me tranquiliza ao afirmar que minha ação só pode ser vivenciada e experimentada por mim. Meu único dever surge do meu único lugar no Ser. De certo que meu olhar é único e singular, mas é embevecido com as palavras do autor e dos companheiros  de estudo.  Mas, mesmo assim, as palavras que pululam da minha caixa estão carregadas de incertezas.
            É portanto, a partir desse eu particular e único no grupo de estudo  que me atrevo a comparecer com as minhas palavras. Dentre os diversos Bakhtins, é precisamente, o Bakhtin filósofo a quem sou apresentada de imediato nessa obra.  Esse fato dificulta ainda mais a escolha das palavras diante da densidade filosófica da escrita do autor.  Por outro lado, permite entrar em contato com palavras que serviram de  fio condutor  de toda sua trama teórica.
            Faraco (2003) me auxilia a compreender o Bakhtin filósofo, dizendo que a construção  de uma prima philosophia era um projeto intelectual do Círculo de Bakhtin. Essa  filosofia primeira era a arquitetura do ato. Para Bakhtin há uma distinção entre o mundo da teoria (mundo das generalizações) e o mundo da vida, o mundo repleto  da historicidade viva, onde os seres humanos, como seres únicos realizam atos irrepetíveis.
            É para o Ser como evento único na existência concreta do ser humano  que se volta Bakhtin em Para uma Filosofia do Ato.  O autor insiste em afirmar que viver é agir e agir em relação ao outro. Eu e os outros somos constitutivos de nossos atos valorativos. O que significa que o ato é o seu conteúdo e não o desempenho real e efetivo de uma ação. 
            Para Bakhtin, a consciência que age e realiza uma ação responsável comunga da unicidade do real como momento único dentro dele. Esta unicidade  da consciência real é uma ação livre do sujeito, do seu envolver na e com a vida, e não como princípio de um direito ou uma lei, o que tornaria o ato  uma fórmula vazia.
            O que me move a  ter atos e ações responsáveis na vida, não é o conteúdo de uma obrigação, mas minha assinatura sob ela.  O que está em jogo é minha decisão de assumir uma obrigação realizando o ato de subscrever-reconhecendo nesse ato a ação responsável. O reconhecimento da participação própria de alguém no Ser-evento unitário não pode ser traduzido em termos teóricos.  Minha participação no Ser é de maneira única e irrepetível e meu lugar não pode ser tomado por ninguém mais.
            Com as afirmações anteriores, Bakhtin  apresenta o inovador conceito do “não-álibi no Ser”.  Conceito que traduz o compromisso de cada um com atos responsáveis perante a vida, sendo algo que eu afirmo de modo único e singular.  Porque o que implica o meu “não-álibi no Ser” é minha singularidade e insubstitubilidade dentro do todo do Ser.
            Bakhtin vai dizer que participo do Ser como único ator. Meu único dever surge do meu único lugar no Ser.  Essa posição leva a impossibilidade de fuga da atuação responsável e obrigatoriamente única na vida de cada um de nós. Desse meu lugar único no Ser, tanto posso assumir a responsabilidade pela minha própria unicidade, como também posso ignorar minha auto-atividade e viver  passivamente,  abdicando da obrigatória unicidade.
            É justamente o “meu não-álibi no Ser”  que transforma uma possibilidade vazia em um ato ou ação responsável. O autor me leva a refletir que a vida precisa de indivíduos que participem ativamente, que não sejam indiferentes  ao outro e consigo mesmo.  Essa participação é única e insubstituível e é condição para viver. Um pensamento não-encarnado, uma ação não encarnada, uma vida fortuita é uma possibilidade vazia, é ser apenas um grosseiro rascunho não reconhecido do Ser único.
            O pensamento participativo é um pensamento enxertado de ação responsável  compreensão emocional-volitiva do Ser na unicidade concreta sob a base de um “não-álibi no Ser”.  No entanto, essa participação no Ser-evento não coaduna com uma irresponsável auto-entrega ao Ser, como Ser possuído do Ser.  Somos convocados a encarnar responsavelmente o ato, subscrevê-lo e nos tornaremos participantes reais no interior do Ser-vento, de nosso lugar único.
            O evento concreto, real e participativo que orienta o ato não pode ser uma representação ou reflexo dos valores para minha ação. Não há abdicação da minha responsabilidade, do meu status de representante autorizado. Ser representante não abole mas especializa minha responsabilidade pessoal.  Aqui Bakhtin se refere a representação  política em que o individuo se livra de sua responsabilidade e perde sua raiz na unidade única de participação, sendo uma responsabilidade vazia, especializada. Por isso, que o autor vai destacar que cada individuo é um representante pessoal, antes de ser um representante do grande todo que é composto de momentos concretos individuais e não de momentos universais e gerais.
            Bakhtin articula os argumentos do “não-álibi- do Ser” como forma de sustentar que  o objeto da filosofia moral é o mundo em que o ato realizado se orienta sob a base da sua participação única no Ser. O ato tem a ver com uma única pessoa e um único objeto em tons individuais emocionais-volitivos.
            Os mundos concretos individuais, irrepetíveis, de consciências encarnadas que agem, incluem momentos comuns em suas várias arquitetônicas concretas. É a arquitetônica concreta do mundo real  do ato realizado que a filosofia moral tem de descrever. Essa descrição não pode emergir abstratamente, mas do plano ou desenho concreto do mundo de uma ação unitária e única, de momentos básicos (eu-para-mim, o outro-para-mim e eu-para-o-outro) concretos de sua construção de sua mútua disposição.
            Bakhtin denuncia uma crise contemporânea, caracterizada por ele como a crise da ação contemporânea, que criou um abismo entre o motivo do ato realizado e seu produto. Como consequência o produto da ação, separado de suas raízes ontológicas perde o sentido. A separação da teoria do ato deteriora a ação, empobrece o ato realizado que se torna uma mera execução de uma necessidade.
            Para ele na base de uma ação real está um ser-em-comunhão com a unidade única: o que é responsável não se dissolve no que é especializado (política), caso contrário,  teríamos uma ação técnica ou instrumental e não responsável. Uma ação responsável não deve ser oposição a teoria e ao pensamento, mas incorporação  em si como momentos necessários e responsáveis.
            Em sua sua insistência com a inevitabilidade do envolvimento do ser humano em atos responsáveis, Bakhtin dá um tom conclusivo à parte introdutória de Para uma Filosofia do Ato com uma filosófica e poética afirmação
A vida pode ser conscientemente compreendida apenas na concreta responsabilidade. Uma filosofia da vida só pode ser uma filosofia moral. A vida só pode ser compreendida como evento em processo, e não como um Ser enquanto dado. Uma vida que se afastou da responsabilidade não pode ter uma filosofia: ela é, por princípio, fortuita e incapaz de ser enraizada.
           
            Falar dessa primeira aproximação com os escritos de Bakhtin na obra estudada  é  sem dúvida, uma grande responsabilidade com a aula como evento único e irrepetível de discussão, carregada de nossas impressões, nossas dúvidas, e por quê  não dizer, nossas “viagens” na leitura da obra de Bakhtin. Assim,  o meu pensamento divaga e espreita  o tempo histórico de onde palavras tão significativas foram escritas. Palavras que transportam consigo o comprometimento com a sua  leitura. Como também instiga  conhecer o que nutria esse homem, que nos convoca insistentemente para o ato responsável com e para outro,  que nos aponta o não-álibi diante da vida e que não aceita uma participação desencarnada,  esvaziada de sentido e de sentimento, que nos convoca à réplica a todo instante? O Marxismo? A Filosofia? A Literatura? O Círculo de amigos?
Sou tomada pelas palavras de Freitas quando afirma que “a interlocução com Bakhtin produz um efeito transformador: é impossível resistir às suas provocações. Não se penetra no mundo teórico de Bakhtin sem que se opere mudanças em nossa maneira de ser” (FREITAS, 2007, p.172). Assim, as reflexões dessa primeira leitura coletiva dos trechos iniciais de Para uma Filosofia do Ato me fez pensar nos sentidos que tem para mim deixar família e amigos em outra cidade e vir cursar o doutorado em educação em Juiz de Fora, dedicando exclusivamente a minha formação profissional.  Momento de parada para refletir e aprofundar às indagações profissionais, de buscar respostas aos desafios postos pela contemporaneidade a partir dos avanços das tecnologias digitais e sua articulação com o processo ensino-aprendizagem[4]. Mas, sobretudo, o  ato de pesquisar para mim é uma resposta no cumprimento da minha função sócio-política dentro de uma  universidade pública voltada para a formação de educadores.
            As palavras de Bakhtin (1993) me levam a pensar que não tenho como delegar ao outro a responsabilidade de pesquisar por mim. Para esse ato eu não tenho álibi. O ato de pesquisar nesse sentido não se torna obrigação, comprimento dos deveres da academia, mas, responsividade, envolvimento, compromisso e disposição em travar o  movimento dialético da teoria com a empiria. Parto para o desafio de compreender os sentidos e significados dos estudantes do curso de Pedagogia no processo ensino-aprendizagem com e sobre as tecnologias digitais.
             Em Estética da Criação Verbal, Bakhtin (2003) propõe uma epistemologia em pesquisa nas Ciências Humanas, na qual pesquisador e pesquisado são sujeitos ativos prenhes de perspectivas na produção de sentidos. Isso é de extrema importância nas pesquisas educacionais. Meu encontro é com o outro na pesquisa e suas vozes repercutem sentidos diversos e visões diferentes de mundo que me lançam à sua compreensão.  Nesse encontro com o outro emerge a alteridade bakhtiniana. Eu me constituo e me transformo com o outro nas interações com as palavras e com os signos. Falando do lugar da literatura, Bakhtin (2003) diz que:
o autor deve colocar-se à margem de si, vivencia a si mesmo não no plano em que efetivamente vivenciamos a nossa vida; só sob essa condição ele pode completar a si mesmo, até atingir o todo, com valores que a partir da própria vida são transgredientes a ela e lhe dão acabamento; ele deve tornar-se um outro em relação a si mesmo, olhar para si mesmo com os olhos do outro; é verdade que até na vida procedemos assim a torto e a direito, avaliamos a nós mesmos do ponto de vista dos outros, através do outro procuramos compreender e levar em conta os momentos transgredientes à nossa própria consciência (2003, p. 13).

Em uma pesquisa reconhecer que o outro me constitui se constitui  e nos constituímos nas tramas das diversas relações, as quais construímos e mantemos  na vida diária é o grande desafio de qualquer pesquisador. Esse reconhecimento contribui para o pesquisador compreender a existência de um sujeito e não de um objeto para ser quantificado e avaliado sob  seu parâmetro de verdade.  É com esse outro que busco produzir o conhecimento, é com suas ideias e pensamentos que me faço e re-faço.  
Para Bakhtin (2003) o homem é o objeto das Ciências Humanas. Ser expressivo e falante que não pode ser visto como coisa mas sim, compreendido em sua ação, fonte inesgotável de sentido e significado.  Em sua especificidade, o homem cria textos e se for estudado fora e independente do texto, não estaríamos tratando de Ciências Humanas, mas de anatomia e fisiologia do homem. O pesquisador no ato da investigação sai à procura dos pensamentos e sentidos produzidos pelo outro que chegam até ele materializados em forma de texto. São as vivências do grupo, suas ideias, suas ações, seus gestos e palavras, o dito e também o não dito que o pesquisador terá em suas mãos para uma compreensão ativa. Por trás de todo texto, está o sujeito, o autor, o falante, por isso cada texto é individual, único e singular. Daí a responsividade com seus discursos na escrita da pesquisa.
Da mesma maneira, que ficamos ''encabulados” no início de um relacionamento e com dificuldade de despedir da pessoa querida, sinto dificuldade em buscar na minha caixa as palavras para encerrar essa conversa. Mesmo sem ter as palavras certas, tenho que dizer que ao enfronhar nos escritos do autor  vou me sentindo autorizada a “por a boca no trombone” ou colocar os dedos no mouse e começar a escrever. Talvez buscasse palavras neutras, palavras alegres, palavras minhas ou ainda palavras alheias. Como diz a música[5]
Palavras apenas
Palavras pequenas
Palavras

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal; Introdução e tradução do russo: Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail. Toward a Philosophy or the Act. Translated by Liapunov. Austin: University of Texas. Press, 1993.
FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Bakhtin e a psicologia. In: FARACO, Carlos Alberto; TEZZA, Cristóvão;  CASTRO, Gilberto de (Orgs.) Diálogos com Bakhtin . 4ª ed.  Curitiba: Editora UFPR, 2007a .



[1]Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora e integrante do Grupo de Pesquisa LIC, coordenado pela professora Maria Teresa de Assunção Freitas.
[2]GALEANO, Eduardo. Janelas sobre  a palavra. In: GALEANO, Eduardo. As palavras andantes. 5. ed. Porto Alegre:L&PM, 2007
[3]Disciplina“Tópico especial sobre linguagem conhecimento e  educação:o ético e o estético no pensamento de Mikhail Bakhtin” ministrada pela Profª Maria Teresa de Assunção Freitas. Utilizamos nessa disciplina a obra Para uma Filosofia do Ato de Bakhtin uma tardução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, elaborada  para uso didático e acadêmico. Essa tradução consta  sem data e remete a edição em inglês de 1993.
[4]Sou professora assistente na UNEB da disciplina Tecnologia da Informação e Comunicação na Educação no Curso de Pedagogia.
[5]Palavras ao vento. Marisa Monte

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