quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Rosana Becker Fernandes

Emergência da autoria em produções escritas de turma de alfabetização
Rosana Becker Fernandes (DINTER UFBA/UNIOESTE)

A cultura escolar, por estar associada a um currículo formal, organizado a partir de uma seleção e sequenciação de conteúdos-objeto a serem trabalhados no processo ensino-aprendizagem pode produzir uma ruptura com as práticas culturais de origem dos alunos,  o que produz uma “educação desvinculada da vida”, “esvaziada da realidade que deveria representar” (FREIRE, 1989, p. 94). Na seleção dos conteúdos curriculares muitas vezes há a ausência de reflexões prévias fundamentais: Para quem ensinamos? Para que ensinamos? Qual a relação do ensinado com a experiência vivida dos alunos e com o contexto social mais amplo?
Quando se questiona a escola do porquê do ensino de determinado conteúdo, não raras vezes, as respostas dadas “Ele é importante para a quarta série; Este conteúdo cai no vestibular; O aluno precisa estar preparado para a vida” revelam tanto uma concepção de saber restrito e apenas útil à burocracia e cultura escolar quanto uma desconsideração do tempo e vivência presente do aluno como não relevante[1].
Como consequência da formalização e descontextualização curricular, o conteúdo escolar é tomado como algo dado, naturalizado, desideologizado, coisificado. Assim artificializado, o conhecimento é tomado como algo “imobilizado, concluído, terminado, a ser transferido” aos alunos como se esses fossem “pacientes acomodados” (FREIRE, 2006, p.28). Quando assim compreendida, a educação passa ser “o ato de depositar no qual os alunos são os depósitos e o professor aquele que deposita” (FREIRE, 1980, p. 79). É a concepção acumulativa de educação, definida por Paulo Freire como concepção bancária.
Na concepção bancária de educação, o conhecimento é um dom concedido por aqueles que se consideram como seus possuidores àqueles que eles consideram que nada sabem. Projetar uma ignorância absoluta sobre os outros é característica de uma ideologia de opressão.  É uma negação da educação e do conhecimento como processo de procura. (FREIRE, 1980, p. 79)

Diferentemente de uma postura conservadora, o oeste do Paraná, a partir do final da década de 70 e, acentuadamente no decorrer da década de 80 do século XX, foi cenário e, simultaneamente, protagonista do que se convencionou chamar virada discursiva no ensino de língua portuguesa no Brasil. De forte inspiração nas reflexões e propostas de Geraldi (1984), o ensino de língua portuguesa nesta região passa a ser compreendido como espaço de produção, circulação e reflexão de conhecimento, em contraposição às abordagens condutistas, prescritivistas e reprodutivistas de ensino.
Também os trabalhos precursores de Cagliari (1989; 1999) e Abaurre (1987; 1988; 1994; 1996; 1997) sobre os processos de aquisição de escrita e práticas alfabetizadoras  possibilitaram que a linguagem escrita começasse a ser compreendida não apenas como o ensino de um sistema homogêneo de estruturas e formas linguísticas, mas também como uma atividade discursiva por meio e no interior da qual os sujeitos, social e culturalmente situados, interagem. 
São ilustrativos dessa mudança conceitual por parte dos professores em relação ao tratamento dado para o trabalho inicial com a escrita na escola os exemplos a seguir apresentados como 1 e 2. A atividade nominada como Figura 1 é o registro final de uma prática de trabalho com a escrita ocorrida no início do ano letivo de 2002 em turma de alfabetização no município de Cascavel. A descrição dos encaminhamentos utilizados foi fornecida pela professora alfabetizadora a partir de relato colhido em entrevista informal concedida por ela, durante a coleta de escritas escolares infantis que realizei na escola municipal onde trabalha.
No dia anterior à atividade contida na Figura 2, a alfabetizadora solicitou que as crianças acompanhassem, durante o telejornal da noite, notícias ou reportagens sobre o carnaval. No dia seguinte, as crianças relataram oralmente o que tinham aprendido sobre o carnaval pelo noticiário. A seguir, a professora leu em voz alta para a turma um breve relato histórico sobre o carnaval do Brasil. Após a leitura, comentou que uma forma de não se esquecer sobre o discutido e aprendido sobre o carnaval seria o registro por escrito das informações obtidas. Propôs, então, a produção de um texto coletivo com as informações tidas como mais importantes para as crianças, ressaltando que seria a escriba da turma naquele momento. Salientou às crianças que no decorrer do ano elas próprias iriam aprender a escrever seus textos. As contribuições das crianças foram registradas e organizadas em forma de texto no quadro-de-giz pela professora. A primeira frase do texto coletivamente produzido foi a escolhida pelas crianças para ser copiada em seus cadernos de atividades. É essa frase a registrada no caderno de J. (5 anos; 10 meses) e reproduzida na Figura 1. Após a cópia, a alfabetizadora atribuiu como tarefa a ser realizada em casa a ilustração da frase/texto e sua posterior leitura e relato para os pais.
Figura 1

Diferentemente da atividade mecânica de seguir linhas tracejadas, a criança nesse contexto escolar é inserida no universo funcional e simbólico da linguagem escrita.  Aqui há uma atividade em que se trabalha com coordenação psicomotora e traçado, mas com uma intencionalidade muito diferente quando cópia e reprodução gráfica de traços são consideradas como um fim em si mesmas. Nessa situação de ensino não se reproduzem linhas e curvas de forma aleatória, num fluxo gráfico contínuo, mas copia-se parte de um texto, a partir do qual a alfabetizadora permite que a criança comece a perceber e se familiarizar com as características do sistema de escrita do português:
a) um sistema de escrita de base alfabética, com características distintas dos sistemas de escrita de base pictográficas e ideográficas;
b) a distinção entre letras e outras formas gráficas (desenhos, rabiscos, números, símbolos);
c) a convenção da direcionalidade da escrita do português (da esquerda para direita);
d) a linearidade da escrita (a ordem das letras em uma palavra não é aleatória, mas é de caráter distintivo);
e) a função dos espaços em branco e da pontuação em final de frase;
f) a identificação e reconhecimento das 26 letras do alfabeto;
g) a categorização gráfica e funcional das letras;
h) a relação entre pauta sonora e pauta escrita e as diferentes correspondências (biunívocas, cruzadas e arbitrárias) entre fonemas e grafemas.

A atividade com lápis e papel, por meio da cópia e da reprodução gráfica aqui ganham outros significados: são apresentados e tornados intencionais pela professora como registro das informações e conhecimentos partilhados e (re)produzidos pela turma sobre o carnaval. A professora, nessa situação de ensino, assume seu papel de adulto letrado, portador e representante da cultura letrada que enreda, incita e inicia a criança no processo interativo com a linguagem escrita. Mesmo sabendo que seus alunos ainda não dominam a natureza convencional do sistema gráfico do português, a alfabetizadora não os subestima e os incita a agir como sujeitos letrados que escrevem e leem.
Quando no espaço escolar, escrita e leitura são abordadas em sua relação com as práticas sociais e culturais nas quais são produzidas, a linguagem escrita passa a ter significado e deixa seu estado de “coisa” para a criança. Para Lemos (1998, p.19), a linguagem escrita não traria, em si mesma, “propriedades perceptuais positivas” que possibilitassem um acesso e monitoramento direto por parte da criança. A relação da criança com a escrita não seria, assim, direta, mas mediada pelo outro, o que já era apontado por Vygotsky (1988). Para o psicólogo soviético, os objetos do mundo físico e cultural não existem a priori, mas se instauram através da interação entre a criança e o seu interlocutor básico, mediada pelo contexto sócio-cultural de que ambos são representantes.
Se o processo de alfabetização procurasse resguardar a dimensão sócio-cultural e significativa da linguagem escrita, como seria a relação dos sujeitos-aprendizes com sua escrita? As escritas infantis originalmente apresentadas pelas Figuras 2 e 3[2], buscam fornecem algumas respostas para essa questão. As escritas foram produzidas por alunos do mesmo contexto alfabetizador (mesma escola municipal de Cascavel, ano letivo de 2002, mesma turma e mesma professora) quatro meses após a experiência descrita a partir da Figura 1. 
As escritas infantis nas Figuras 2 e 3, pelas características textuais e discursivas que apresentam, permitem analisar que nesta turma de alfabetização a escrita foi sendo trabalhada de forma culturalmente sensível e significativa para os sujeitos aprendizes. Apesar de ainda não dominarem por completo as convenções do sistema de escrita alfabética do português, as produções infantis já são inteligíveis e preservam marcas da subjetividade/autoria de quem as produziu. Essas marcas de autoria só são possíveis quando às crianças é possibilitada a vivência e produção constante de escritas espontâneas acolhidas pelo professor como preciosos indícios do processo de aquisição/aprendizado da linguagem escrita e não como uma forma errada ou desviante a indicar uma incapacidade do aprendiz.  Nessas escritas também é possível perceber a diversidade de representações culturais (re)produzidas pelos meios de comunicação e que circularam à época (junho de 2002) sobre a participação e vitória da seleção brasileira na copa do mundo de futebol. Outro aspecto relevante é perceber que, mesmo que tenham vivenciado experiências e práticas pedagógicas idênticas, as crianças revelam a singularidade que caracteriza a constituição do aprendizado da escrita e da constituição da própria subjetividade como aluno autor de textos/discursos escritos.
Figuras 2 e 3

CAFU

              OBRIGADO POR SER O CAPITÃO
E OBRIGADO QUE VOCÊ ERGUEU A TAÇA
VOCÊ FEZ O QUE PODE E VEIO AGARRADO NA TAÇA
      PARA NINGUÉM ROUBAR
THIAGO
FELIPÃO

  OBRIGADO POR VOCÊ SER UM TÉCNICO,
PROFESSOR E PAPAI DE TODOS VOCÊ
FORMOU UMAFAMÍLIA MUITO
GRANDE
                          LUÍS HENRIQUE

Não é raro em trabalhos de aquisição de escrita/alfabetização, adotar-se uma abordagem essencialmente cognitivista para a análise da relação da criança com a linguagem. Já para os trabalhos de pesquisa em aquisição, fundamentados na perspectiva bakhtiniana de linguagem, a escrita não é um fenômeno que pode ser compreendido e analisado à parte da interação verbal e social dos interlocutores. Ao se assumir a linguagem como interação, assume-se, também, como teoricamente significativos o papel do contexto e do outro; compreende-se  que o processo de interação sujeito-linguagem não é apenas cognitivo, mas, sobretudo, discursivo. E, assim, é preciso superar o mito do letramento e se discutir as implicações advindas quando se aprende a escrever, uma vez a aprendizagem da escrita implica “um movimento de compromisso em que o instrumento adere o sujeito a um universo já formulado”, como já alertava Osakabe (1985, p. 152).
É necessário refletir que tanto o sujeito-aprendiz como o sujeito-professor “não é autônomo nem monádico, o cogito auto criador de Descartes; em vez disso existe somente em diálogo com outros eus. O eu necessita da colaboração de outros para poder definir-se e ser ‘autor’ de si mesmo” (STAM, 1992, p.17). Autoria implica compreender que
Vivo no universo das palavras do outro. E toda a minha vida consiste em conduzir-me nesse universo, em reagir à palavras do outro (as reações podem variar infinitamente), a começar pela minha assimilação delas (durante o andamento do processo do domínio original da fala), para terminar pela assimilação das riquezas da cultura humana (verbal ou outra) (BAKHTIN, 1997b, p. 383).

Ao se conceber o sujeito de forma apriorística, esquece-se de que
as influências extratextuais têm uma importância especial nas primeiras fases da evolução do homem. Essas influências se envolvem na palavra (ou noutros signos), e tal palavra é a dos outros, e, acima de tudo, a da mãe. Depois disso, a “palavra” do outro” se transforma, dialogicamente, para tornar-se “palavra pessoal-alheia” com a ajuda de outras “palavras do outro”, e depois, palavra pessoal “com, poder-se-ia dizer, a perda das aspas” (BAKHTIN, 1997c, p. 405-406).

Quando se percebe no cenário pedagógico brasileiro uma preocupação incessante com objetos de ensino, estratégias e metodologias, talvez seja uma resposta responsável pensar como contrapalavras em práticas/experiências pedagógicas alicerçadas em trabalhos do aluno e do professor sob a ótica da autonomia, ambos constituindo-se como autores de textos e de saberes. Apesar da brevidade das colocações feitas, as escritas e o contexto alfabetizador descritos apontam que tal resposta é possível.

REFERÊNCIAS
ABAURRE, Maria Bernadete. Uma história individual. In: ABAURRE, Maria Bernadete; FIAD, Raquel Salek e MAYRINK-SABINSON, Maria Laura. Cenas de aquisição da escrita: o sujeito e o trabalho com o texto. Campinas: Mercado de Letras, 1997, p. 79-116.
______. Os estudos linguísticos e a aquisição da escrita. In: CASTRO, Maria Fausta Pereira. (Org.). O método e o dado no estudo da linguagem. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.
_____. Indícios das primeiras operações de reelaboração nos textos infantis. Estudos Lingüísticos, São Paulo, v. 1, XXIII, p.367-372, 1994.
______. O que revelam os textos espontâneos sobre a representação que faz a criança do objeto escrito? In: KATO, Mary Aizawa . (Org.). A concepção da escrita pela criança. Campinas: Pontes, 1988.
_____. Linguística e Psicopedagogia. In: SCOZ, Beatriz Judith Lima et al. (Orgs.). Psicopedagogia: o caráter interdisciplinar na formação e atuação profissional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. p.186-216.
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. Tradução [feita a partir do francês] Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997a. p.277-326.
______. Apontamentos 1970-1971. In: Estética da criação verbal. Tradução [feita a partir do francês] Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997b. p.369-397.
______. Observações sobre a epistemologia das ciências humanas. In: Estética da criação verbal. Tradução [feita a partir do francês] Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997c. p.399-414.
BAKHTIN, Mikail; VOLOSHINOV, V.N. Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética sociológica). Tradução [feita do inglês] por Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza para uso didático. Curitiba, UFPR, s/d. Título inglês: Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics, publicada em V. N. Voloshinov, Freudism. NewYork. Academic Press, 1976.
CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabertizando sem o bá-bé-bi-bó-bu. São Paulo: Scipione, 1999.
_____. Linguística e alfabetização. São Paulo; Scpione, 1989.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 48. ed. São Paulo: Cortez, 2006.
_____. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
_____. Conscientização: teoria e prática da libertação. 3. ed. São Paulo: Moraes, 1980.
GERALDI, João Wanderley. O texto na sala de aula. Cascavel: Assoeste, 1984.
 STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. Tradução Heloísa Jahn. São Paulo: Ática, 1992.
VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. Tradução José Cipolla Neto, Luís Silveira M. Barreto, Solange Castro Afeche. 2 . ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988.


[1] O aprendizado de tais saberes ainda é reforçado por papeis, normas, rotinas e ritos próprios da escola como instituição social específica.

[2] Acompanham a versão original a transcrição ortográfica para facilitar a leitura. 

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