quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Rosangela Padilha Thomaz dos Santos

O dialogismo, a alteridade e a polifonia na teia da complexidade humana
Rosangela Padilha Thomaz dos Santos[1]
Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias – RJ / SME
O posicionamento aqui adotado em relação ao dialogismo e à alteridade se sustenta na teoria bakhtiniana. O diálogo, de acordo com Bakhtin, não se reduz a relação face a face, sendo este apenas uma de suas formas. O autor o coloca como algo mais ampliado, uma vez que todos os enunciados num processo comunicacional se constituem em diálogo, que pressupõe sempre a palavra do outro, evidenciada nas posições entre as relações sociais. Freire confirma a teoria bakhtiniana quando diz: “O diálogo é esse encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu” (Freire, 2005, p.91).
 Reconhecer um discurso diverso e um sentido singular não deve impedir que se examine a relação de forças desiguais que a produziu e que o atravessa. O pluralismo do pensamento bakhtiniano, traduzido nos conceitos de dialogismo ou polifonia, é lugar de conflito e tensão, e os lugares sociais de onde se produzem os discursos e sentidos não são necessariamente simétricos. (AMORIM, 2007, p.13)      
      
 Tudo o que é dito e a maneira como se diz está sempre impregnado pelo discurso do outro, na plenitude de sua diversidade. É preciso entender que tudo que somos é produto da interação com o outro, constituindo assim, o conceito de alteridade, que nos impulsiona a compreender o nosso outro como verdadeiro outro, não como ser passivo, mas como aquele que também é parte ativa na relação, ocupante do lugar de pronunciador da realidade. Portanto, marca e é marcado, se constrói e é construído, por isso: o eu-outro são co-partícipes na teia do desenvolvimento humano, transformando e sendo transformados.
Os participantes de um diálogo são peça fundamental para o crescimento individual e coletivo. As diversas vozes se entrelaçam a fim de pronunciar a realidade, gerando o desenvolvimento da consciência crítica sobre a experiência, redimensionando-a.
Os indivíduos e os grupos podem conquistar uma consciência crítica, cada vez mais elaborada, sobre a experiência humana, na medida em que são capazes de permitir que os diferentes gêneros de discurso (desde o discurso acadêmico até as formas cotidianas de expressão, através de ações, opiniões e representações sociais) possam interagir, transformando e re-significando mutuamente as concepções, sobre o conhecimento e a experiência humana que circulam entre as pessoas num determinado espaço sociocultural, e num dado momento histórico (Freitas, Souza e Kramer, 2007, p.8).
         
Toda forma de expressão deve ser valorizada, assumindo-se o respeito às diferenças; porque ser diferente não significa ser inferior. Esse respeito é ponto crucial para o crescimento partindo da heterogeneidade, pois é essa diferença que gera sentido num discurso vivo. “Somente somos iguais no plano teórico e abstrato; no plano empírico, cada um de nós ocupa um lugar singular e único”, diz Bakhtin (Apud Amorim, 2007, p.14).
Numa perspectiva sócio-histórica, torna-se fundamental a percepção acerca do sujeito, que deve ser percebido em sua singularidade, mas ao mesmo tempo como ser plural, uma vez que é atravessado pelas diversas vozes inseridas no contexto.
Fiorin (2008) destaca três conceitos de dialogismo na perspectiva bakhtiniana. No primeiro conceito, o enunciado não existe fora da relação dialógica, logo todo enunciado é dialógico e sempre se constitui a partir de outro enunciado. É sempre a resposta a um enunciado já existente, ainda que esteja velado. Por isso, num único enunciado ouvimos no mínimo duas vozes, a voz de quem fala e o discurso oposto que fez gerar o primeiro: ambos se concretizam na heterogeneidade. O autor afirma que “o primeiro conceito de dialogismo diz respeito, pois, ao modo de funcionamento real da linguagem: todos os enunciados constituem-se a partir de outros” (Ibidem, p.30).
 No segundo conceito, o dialogismo se mostra no discurso, é aquele em que o enunciador incorpora a voz ou vozes de outro(s) no enunciado. Trata-se do discurso composicional, o que Bakhtin chama de concepção estreita de dialogismo. Outras vozes são mostradas no discurso externa e visivelmente (Ibidem).
 Assim, há duas formas de inserir o discurso alheio no enunciado. Na primeira forma, o discurso alheio é abertamente citado, ficando completamente separado do discurso do citante; enquanto que na segunda, não se distingue com clareza o enunciado citante do citado.
  Teremos assim o discurso alheio demarcado e não demarcado. No primeiro caso aparece nitidamente o discurso do outro, direta ou indiretamente. Já o segundo, não permite demarcação nítida das vozes, pois estas se misturam; entretanto são claramente percebidas no discurso. Devido a esse entrelaçamento de vozes, diz-se que as palavras são bivocais (Ibidem, p.38).
    Já o terceiro conceito de dialogismo trata da constituição da subjetividade, pelo conjunto das relações sociais de que o sujeito participa. Esse sujeito age e constitui-se em relação ao outro, por isso o dialogismo é o princípio de constituição do indivíduo. Portanto, a apreensão do mundo é um processo histórico, uma vez que o sujeito está sempre em relação com o outro.  Como a realidade é heterogênea, o indivíduo apreende as diversas vozes sociais circulantes; dessa forma o sujeito vai se constituindo discursivamente. A partir do momento que a constituição do sujeito se dá sempre em relação ao outro, “o mundo exterior não está nunca acabado, fechado, mas em constante vir a ser” (Fiorin, 2008, p.55). Esse conceito abrange inclusive os sentidos do passado.
Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo dos séculos passados, podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por todas): eles sempre irão mudar (renovar-se) no processo de desenvolvimento subseqüente, futuro do diálogo (BAKHTIN, 2003, p. 410).
         
Fiorin chama atenção para o fato de que a construção da consciência se dá pelo encontro de diferentes vozes. Algumas vozes se colocam imutáveis, rígidas, fechadas, não admitindo a aceitação de outras vozes, enquanto outras são mais flexíveis, abertas às mudanças, são, portanto, passíveis de impregnarem-se por diversas vozes.
O mundo interior é a dialogização da heterogeneidade de vozes sociais. Os enunciados, construídos pelo sujeito, são constitutivamente ideológicos, pois são uma resposta ativa às vozes interiorizadas. Por isso, eles nunca são expressão de uma consciência individual, descolada da realidade social, uma vez que ela é formada pela incorporação das vozes sociais em circulação na sociedade (Fiorin, 2008, p. 58).
           
Sendo o mundo exterior formado por diversas vozes, o enunciado não pode ser considerado expressão individual da consciência, pois essa consciência é socialmente construída. Porém, cada indivíduo interage de forma única com essas diversas vozes, por isso não as recebe com passividade. Evidencia assim sua consciência singular, já que ao mesmo tempo em que é influenciado também influencia. Portanto, conclui, “o sujeito é integralmente social e integralmente singular” (FIORIN, 2008, p.58).
            Mas é fundamental lembrar que não se pode confundir dialogismo com polifonia, uma vez que um texto pode ser dialógico, mas não necessariamente polifônico: o primeiro pode se apresentar como um monologismo, evidenciando uma única voz; enquanto este último apresenta uma multiplicidade de vozes.
            A partir das leituras em Bakhtin podemos dizer que polifonia é quando existem outras vozes dentro de um texto. Esta se caracteriza pela existência de vozes polêmicas em um discurso, eliminando a presença de uma voz dominante.
A polifonia é aquela “multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis”, cujas vozes não são meros objetos do discurso do autor, mas “os próprios sujeitos desse discurso”, do qual participam mantendo cada uma sua individualidade caracterológica, sua imiscibilidade (BEZERRA, 2008, p.198).
 
No discurso polifônico as vozes não são coisificadas, manipuladas, pelo contrário, dialogam autonomamente. Segundo Bezerra (2008) “o que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente do grande coro de vozes que participam do processo dialógico”.
Sendo assim, é possível ressaltar a necessidade do discurso polifônico a partir do    pronunciamento de Bakhtin (2003, p.401) que põe em relevo essas diversas vozes quando diz: “Se transformarmos o diálogo em um texto contínuo, isto é, se apagarmos as divisões das vozes [...], o que é extremamente possível [...], o sentido profundo (infinito) desaparecerá (bateremos contra o fundo, poremos um ponto morto)”.
O autor compara o pensamento com um peixe que se choca com o fundo e as paredes de um aquário sendo impedido de ir além. Completa dizendo que este pensamento impedido de prosseguir nada mais é do que o pensamento dogmático, que devemos repudiar, sob pena de ficarmos acorrentados e escravizados em nossas próprias certezas, impedindo-nos da liberdade de interagirmos com a realidade que nos cerca e perdendo a oportunidade de sermos atravessados pelas diversas vozes entretecidas num dado contexto.
Portanto, para Bakhtin não existem limites para o contexto dialógico e não há a primeira e nem a última palavra: esta se estende tanto ao passado quanto ao futuro ilimitadamente.

Referências Bibliográficas:
AMORIM, Marília. A contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação ética, estética e epistemológica. In: FREITAS, Maria Tereza; SOUZA, Solange Jobim e; KRAMER, Sônia. Ciências Humanas e Pesquisas: leituras em Mikhail Bakhtin (orgs.). 2. ed – São Paulo, Cortez, 2007.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4ª ed – São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth. (org.) Bakhtin: Conceitos-chave. 4ª ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2008, PP. 191 – 200.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. 1ª ed. São Paulo: Ática, 2008.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 47ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
FREITAS, Maria Tereza; SOUZA, Solange Jobim e; KRAMER, Sônia. Ciências Humanas e Pesquisas: leituras em Mikhail Bakhtin (orgs.). 2. ed – São Paulo, Cortez, 2007.
[1] Mestre em educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ.

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