quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Simone Rocha Salomão

Aproximações entre ensino de ciências e literatura: caminhos para contrapalavras
simone Rocha Salomão – FE/Universidade Federal Fluminense

Diversos estudos há tempos vêm discutindo as relações entre linguagem, literatura e ciência e têm analisado as condições práticas de aproximação entre ensino de ciências e textos variados, inclusive os literários. Eliminando barreiras disciplinares, tais pesquisas buscam aproximações entre as produções da literatura e o conhecimento científico, tomando como argumento de análise a dimensão cultural. Além disso, têm ponderado sobre as implicações positivas da historicidade e da polissemia, próprias dos textos literários, para o enriquecimento do processo de ensino-aprendizagem de temas científicos e sobre a contribuição das aulas de ciências para o desenvolvimento de práticas de leitura nas escolas (Zanetic, 1997; Silva, 1998; Moreira, 2002).
Voltadas à dimensão linguística e com diferentes graus de implicações de ordem pedagógica, outros trabalhos discutem características e especificidades da linguagem científica, tomadas em confronto com a linguagem cotidiana. Nesse contexto são destacados, sobretudo, a formalização e o caráter estruturado e de autoridade da linguagem científica (PossentI, 1997; MORTIMER et al,1997; LOPES, 1999).

Reconhecendo a linguagem como condição e como limite para qualquer tipo de conhecimento, Possenti (1997) destaca como importante característica do discurso científico uma forte estruturação, que se configura em uma progressiva eliminação do vivido, do vivido enquanto representado na linguagem cotidiana não-científica. Tal estruturação busca diminuir a relação entre o enunciado e o sujeito que o produz e, ainda que a subjetividade permaneça presente, o sistema de produção dos enunciados científicos não se remete a ela e se esforça para obter uma linguagem estruturada livre das experiências, dos interesses pessoais e da ideologia.
Sobre a objetivação e precisão atribuídas à linguagem científica, o autor observa que a linguagem das ciências exatas produz discursos logicamente estabilizados, que se propõem não sujeitos a interpretações variadas, leituras particulares ou controvérsias e têm ênfase no domínio da linguagem técnica, condição para comunicações eficientes entre os profissionais e continuação das pesquisas. Assim, a propalada precisão da linguagem das ciências da natureza, mais do que uma propriedade da linguagem, seria o efeito de um trabalho histórico de desideologização e, principalmente, de um aprendizado e treinamento peculiares dos cientistas.
Essas considerações nos ajudam a perceber a relevância da discussão sobre linguagem no âmbito do ensino de ciências, entendendo que ele se dá no embate em sala de aula entre a linguagem cotidiana e elementos da linguagem científica. Permitem também apontar a positividade do trabalho com textos literários nesse contexto, visto a possibilidade de a literatura resgatar para o ensino a dimensão da subjetividade e a expressividade da vida cotidiana, aspectos que tendem a um apagamento pela linguagem científica. Temos participado desse diálogo com alguns estudos, entre os quais destacamos Salomão, 2000, 2003, 2005 e Lopes e Salomão, 2010. Nesse percurso, elementos da concepção de linguagem do Círculo de Bakhtin nos têm servido de importante base teórico-metodológica. As noções por ele propostas acerca de palavras como signos, polifonia, linguagens sociais e gêneros do discurso, híbridos discursivos, discursos de autoridade e internamente persuasivos, palavras alheias e próprias, contrapalavras e exotopia são ideias fortes que podem iluminar olhares e movimentar análises de dados de linguagem em sala de aula de ciências, incluindo a discussão sobre a inserção de textos literários nessas aulas. No presente texto trazemos um recorte de dados empíricos analisados em Salomão (2005) – resumos escritos por alunos, procurando explorá-los, brevemente, com o intuito de defender a aproximação da literatura com o ensino de ciências através das noções bakhtinianas de compreensão ativa e contrapalavras.
O referido trabalho explora a peça de teatro Lição de Botânica, escrita por Machado de Assis em 1906. O texto, tecido com a fina ironia do autor e muitos nomes científicos de plantas, traz como uma caricatura de pesquisador a figura do botânico sueco Sigismundo de Kernoberg que está no Brasil para explorar a flora da América do Sul. Na pesquisa, a partir da peça, são propostas questões teóricas para discussão acerca das relações entre linguagem e ensino/aprendizagem de ciências. É gerado também um conjunto de atividades com turmas de 7º ano do Ensino Fundamental, incluindo (i) apresentação da peça para os alunos, (ii) discussões sobre a peça e sobre ciência e linguagem científica e (iii) módulo de estudo de botânica, com ênfase na taxonomia e na reprodução vegetal, e montagem de um herbário junto aos alunos.
Uma das questões presentes na pesquisa pedia aos alunos que escrevessem, em duplas, um resumo da peça Lição de Botânica, assistida pela turma. Apresentamos a seguir uma apreciação dos resumos produzidos, no intuito de captar a percepção que os alunos tiveram sobre a história contada e os sentidos que lhes atribuíram, bem como os recursos linguísticos que mobilizaram para falar sobre ela.
O resumo produzido pelos alunos Pablo e Ranoi mostra-se bem detalhado e preciso e bastante interessante no sentido de apresentar aos leitores os elementos principais da história. Segundo eles, a peça “é a historia de um barão e seu sobrinho Henrique. Dona Leonor e suas duas sobrinhas Cecília e Helena. Henrique se apaixonou por Cecília e queria se casar com ela, mas o Barão não queria que Henrique se casasse com Cecília porque queria que ele fosse botânico e a botânica exige muito dele e ele não podia se casar. Então foi falar com dona Leonor para não permitir o encontro dos dois e esqueceu seu livro de botânica sueco. Cecília implorou para Helena ajudá-la a se casar com Henrique. Helena encontrou o livro do barão e teve uma ideia, o Barão voltou para pegar seu livro e Helena comentou que gostava de botânica e o Barão se encantou com a sabedoria de Helena e se ofereceu para ser seu professor e ele foi se apaixonando por ela e pediu sua mão em casamento Helena pediu três meses para pensar e liberou Henrique para casar com Cecília.”.
Esse resumo assinala bem os elementos essenciais da trama. Nada escapou aos meninos: os personagens e seu parentesco; a paixão entre os jovens vizinhos; a proibição do casamento, vista a vocação para a botânica e sua pressuposta incompatibilidade com o matrimônio; a visita para impedir o namoro; o livro esquecido; o desespero da jovem apaixonada; a ideia de Helena a partir do livro encontrado; o interesse pelo estudo; a sedução do mestre e os pedidos de casamento. Não faríamos melhor!
A maioria dos outros resumos produzidos, com suas diferentes ênfases e estilos de redação, também nos dá uma ideia bem satisfatória da história, mostrando o grau de atenção e a capacidade de interpretação dos alunos. A maioria deles mostra uma boa compreensão da história, articulando dois ou três dos principais argumentos da trama, respeitando a sequência em que os acontecimentos ocorrem, ainda que nem todos os textos produzidos funcionem tão bem como um resumo da peça. Alguns, por omitirem elementos importantes da trama, não conseguiriam dar uma ideia clara do conteúdo da peça para alguém que não a tivesse assistido. Na sequência de resumos abaixo, por exemplo, vemos que, de um para o outro, os detalhes vão sumindo e, junto com eles, as especificidades e a própria essência da história.
Era uma família que morava no Andaraí, existia uma tia que se chamava dona Leonor e duas sobrinhas Helena e Cecília. Helena era viúva e Cecília era apaixonada por Henrique seu vizinho, sobrinho do barão de Kernoberg, o barão era sueco, Botânico, ele era contra o casamento. O Barão um dia foi a casa de dona Leonor para pedi-la que não deixasse Cecília se casar com Henrique, mas o barão se encontrou com Helena e dali surgiu uma grande amizade, que acabou em um romance, depois mudou o seu conceito sobre o casamento e no que era só uma lição de botânica acabou sendo um romance” (Letícia e Maêva).
O Barão não aprovava o namoro de seu sobrinho Henrique com Cecília, pois todo botânico deve ter voto de celibato. Logo após Cecília pede a sua esperta irmã Helena para ajudar a não perder Henrique. Helena bola um plano, arranja um bom partido e salva o casamento de sua irmã (Danilo e Vinícius).
Conta a história que Cecília queria se casar com Henrique o sobrinho do barão de Kernoberg e o barão não concedia a mão de seu sobrinho e em 20 minutos Helena a irmã de Cecília convenceu o barão a conceder a mão de seu sobrinho (Dhuliano e Vanderson).
Notamos que no primeiro resumo, embora escrito com concisão, elementos importantes estão presentes e temos bem demarcados os sujeitos, o espaço e a temporalidade da história. No segundo, ainda que preservados os dados essenciais, já não temos o bairro, nem a tia, nem o botânico sueco, nem as lições de Botânica. E no terceiro, tão ligeiro como a persuasão de Helena, de toda a trama tecida pouca coisa foi mostrada.
Os resumos que apresentaram apenas um argumento sobre a história talvez não possam ser considerados resumos, mas sim uma exposição do elemento que os alunos entenderam como central e quiseram destacar, tal como exemplificado a seguir:

O Barão de Kernoberg era um botânico sueco que não aceita o casamento de seu sobrinho Henrique com Cecília porque iria atrapalhar os estudos de seu sobrinho Henrique que iria se tornar botânico também (Lucas e Felipe).

Alguns alunos mostraram dificuldades para resumir a peça, apresentando apenas alguns elementos da história de forma meio confusa ou apresentando no lugar de um resumo uma espécie de comentário, dando sua apreciação sobre aspectos observados, como nas respostas abaixo:

É uma história muito instrutiva que inclui a botânica com a ciência e o amor entre duas coisas, além de gostar de Helena o Barão também gostava de Botânica (Agatha e Mariângela).
O Barão de Kernoberg queria ensinar Helena a aprender botânica, mas a tia dela achava horrível esse negócio de aprender botânica. É também graças ao livro que subiu a paixão entre Barão de Kernoberg e Helena (Patrick e David).

Podemos considerar que para a elaboração dos resumos os alunos levaram em conta tanto o que lembravam da apresentação cênica, quanto as considerações levantadas nas discussões anteriores a essa atividade e as informações dadas pelo apresentador da peça, que podemos considerar como textos paralelos que contribuíram para sistematizar o conteúdo da história e destacar seus pontos decisivos.
Algumas indicações desses aportes podem ser vistas, por exemplo, no fato de que a maioria dos resumos coloca o Barão como protagonista da história, mas vários outros destacam Cecília como personagem principal, perspectiva proposta na fala do apresentador; de quem também se vêem repetidas algumas expressões, como o amor pela ciência e a ciência do amor ou Helena é realmente muito esperta ou ela traça um plano para ajudar Cecília. Assim, compreendemos os resumos dos alunos como novos enunciados nessa corrente de enunciados que já se davam a partir da peça, e dos quais na verdade emanam, guardando com eles um intenso diálogo, como nos sugere Bakhtin, num plano mais amplo, quando propõe o princípio dialógico constitutivo da linguagem e um ambiente responsivo do universo da cultura.
Ainda na dimensão sociolingüística, foi interessante ver as diferentes formas escolhidas pelos alunos para resumirem a história. Em geral os resumos, assim como as resenhas e as sinopses, mesmo seguindo traços modelares próprios do gênero discursivo que constituem, guardam espaços para as marcas individuais do autor e mostram suas escolhas no plano dos acontecimentos e no plano lingüístico: sua atenção, as prioridades que elege junto ao conjunto de dados, a perspectiva que adota para narrar os fatos, os recursos expressivos que utiliza e os efeitos de sentido que suscitam, enfim, todo o seu trabalho com a linguagem, o que nos termos de Possenti (2001) define o estilo do autor e individualiza seu discurso.
Nesse contexto, observamos que alguns resumos se caracterizam por empregar no seu início expressões que indicam uma descrição ou exposição da peça, como por exemplo:

“O teatro fala sobre a Lição de Botânica e os personagens são o barão, o sobrinho Henrique, D. Leonor e suas sobrinhas Helena e Cecília ...”,
A peça conta a história de um Botânico que se chamava Sr. Barão de Kernoberg ...” ou
O texto nos conta a história de uma menina chamada Cecília que se apaixonou por Henrique ...”.
Outros resumos vão instalar os autores em nova posição, como contadores, introduzindo o leitor diretamente na peça, iniciando-se como uma narração, usando fórmulas que estão bem próximas de expressões clássicas como “era uma vez...”:
Havia uma menina chamada Cecília que era apaixonada pelo sobrinho do Barão...”,
Essa é a história de um barão e seu sobrinho Henrique...” ou
Cecília era uma jovem muito apaixonada por Henrique...”.
Ainda entre as muitas especificidades dos resumos que poderiam ser assinaladas, notamos determinados efeitos de sentido produzidos por seus enunciados e, também, a expressão de uma carga axiológica, quando os alunos apresentam uma avaliação própria a respeito da ação e das intenções das personagens, tais como nos dois exemplos considerados a seguir.
O efeito irônico, o golpe certeiro nas intenções que atribuem à Helena, obtido pelos alunos ao usarem a terminologia científica no enunciado com o qual resumem a história: “Que a sobrinha mais velha estava mais interessada no barão do que no estudo das gramíneas e do perianto” (Lucas e Marlon, T. 603). O emprego dos termos científicos, a exemplo de Machado de Assis, recupera o tom irônico da peça. Não seria a mesma coisa se dissessem, por exemplo:
“... estava mais interessada no Barão do que no estudo das plantas ou da Botânica”.
Já um outro resumo tece outras significações: “... mas a irmã de Cecília, Helena, finge que quer aprender botânica mas no fundo ela quer ajudar sua irmã e no final dessa história Helena consegue não só juntar Cecília e Henrique mas também conquistar o coração do Barão” (grifos da pesquisadora). Fingir não é uma atitude ética, mas, se no fundo as intenções são nobres e querem ajudar, a pessoa deve ser recompensada, conquistando algum prêmio valioso.     
Nossa análise sobre os resumos da peça produzidos pelos alunos mostra a variedade de aspectos que podem ser observados em um resumo, revelando que a sua produção não é uma tarefa tão simples. O exercício de resumir uma história envolve a mobilização de diversos elementos, como discutimos a pouco, inclusive a articulação de tudo o que já foi dito antes sobre a própria história. Resumir uma peça é, de início, encurtá-la, mas não se pode sair por aí cortando qualquer pedaço. E o próprio resumo, torna-se também uma história, que para fazer sentido, impõe algumas exigências. Na diversidade dos resumos produzidos revelam-se as distintas respostas que os alunos foram produzindo, enquanto audiência da peça, no diálogo com os personagens de Machado de Assis. Algumas respostas foram mais amplas, evidenciando e constituindo um entendimento mais complexo e pleno dos aspectos envolvidos na história, outras foram mais pontuais ou formularam um determinado ponto de vista sobre um único aspecto. Mas o que gostaríamos de destacar é a atmosfera dialógica que julgamos que a apresentação da peça propiciou para a abordagem dos conteúdos de botânica junto à turma. Na sequência de atividades propostas na pesquisa, a linguagem científica e as famílias vegetais trabalhadas apareceram mediadas pela história, tecida pela linguagem literária, traçando laços entre a ciência e a vida cotidiana e permitindo aflorar a subjetividade  e os saberes dos alunos.     
Num paralelo possível com atividades de resumo de textos didáticos voltados ao ensino de Ciências, podemos pensar que, também nesse contexto, resumir seja uma tarefa complexa, e que exige, antes de tudo, um domínio e uma compreensão da totalidade do texto a ser resumido e o empenho dos alunos pelos exercícios com a linguagem escrita. Aspectos aos quais podemos dedicar maior atenção durante nossas práticas de ensino, no sentido de enxergarmos como um objetivo do ensino de ciências a apropriação pelos alunos de elementos da linguagem científica, que no mais constitui uma dimensão do seu processo de aprendizagem, já que na perspectiva de Bakhtin, segundo Faraco (2003), envolver-se em uma determinada esfera de conhecimento implica desenvolver também um domínio dos gêneros que lhe são peculiares, ou seja, aprender os modos sociais de fazer é também aprender os modos sociais de dizer.

Referências Bibliográficas
FARACO, C. A. Linguagem e Diálogo – As ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. Curitiba, PR,: Criar Edições, 2003.
LOPES, A.R.C. Conhecimento escolar: Ciência e cotidiano. RJ: Eduerj, 1999.
LOPES, E. M. e SALOMÃO, S. R. O trabalho com a literatura no ensino de ciências nas séries iniciais: aprendendo com o Diário de uma minhoca. In: Sede de Ler. Ano 1 - n.1. PROALE. Niterói: FE/UFF, 2010.
MOREIRA, I.C. Poesia na sala de aula de ciências? A literatura poética e possíveis usos didáticos. In: Física na Escola, v.3, no 1, 2002.
MORTIMER, E.F.; CHAGAS, A. N. e ALVARENGA, V. T. Linguagem científica versus linguagem comum nas respostas escritas de vestibulandos. In: Atas do I Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências. S.P.: Águas de Lindóia, 1997.
POSSENTI, S. Discurso, estilo e subjetividade. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
SALOMÃO, S.R. Linguagem científica e linguagem poética: práticas culturais na escola. In: ALMEIDA, M. J. P. M. e SILVA, H. C. (Orgs.) Textos de Palestras e Sessões Temáticas – III Encontro Linguagens, Leitura e Ensino da Ciência. FE/Unicamp, Campinas, S.P: 2000.
SALOMÃO, S. R; SOUZA, M. G. Histórias de Insetos: Aproximações entre Gêneros de Fala. In: Anais da XI International Bakhtin Conference., Curitiba, PR: UFPR, 2003.
SALOMÃO, S. R. Lições da Botânica: um ensaio para as aulas de ciências. Niterói: FE/UFF, 2005 (tese de Doutorado).
SILVA, E.T. Ciências, leitura e escola. In: ALMEIDA, M.J.P.M. e SILVA, H.C. (orgs.) Linguagem, leituras e ensino de ciências. Campinas, SP: Mercado das Letras, 1998.
ZANETIC, J. Física e literatura: uma possível integração no ensino. In: Caderno Cedes, ano XVIII, no 41. Campinas, SP: Unicamp/ Cedes, 1997.

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