quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Suzana Lima Vargas, Moyra Ribeiro Marques

A responsividade discursiva no processo de produção e refacção de textos no ensino fundamental
Suzana Lima Vargas
Moyra Ribeiro Marques (UFJF)

Introdução

Minha palavra permanece no diálogo contínuo, no qual ela será ouvida, respondida e reapreciada (BAKHTIN, 2003, p.356)

Este trabalho, vinculado à Pesquisa “Educação linguística na escola pública” (UFJF/FAPEMIG) e ao projeto de pesquisa “Os processos de escrita, revisão e reescrita de textos por alunos do ensino fundamental”, a partir da noção de língua como atividade social, histórica e cognitiva defendida por Bakhtin (2003), discute os aspectos da responsividade discursiva indiciados no processo de refacção textual de uma aluna do 5° ano do ensino fundamental e as repercussões do bilhete da professora e seus comentários orientadores para a correção textual.
A perspectiva metodológica da pesquisa está relacionada ao paradigma indiciário, modelo epistemológico proposto pelo historiador italiano Ginzburg (1989). O paradigma indiciário, conforme denominado por Ginzburg, é um modelo fundado no detalhe, no episódico, em que a atenção do investigador deve voltar-se para a observação do idiossincrático, do singular, de tal maneira que formule hipóteses explicativas interessantes a respeito de uma realidade complexa, não experienciável diretamente. A partir dessa perspectiva, os dados singulares podem ser altamente reveladores daquilo que se busca conhecer (no caso da presente pesquisa, aquilo que é revelado pelas marcas deixadas nas refacções textuais sobre a complexa relação entre o sujeito e a linguagem).
Cumpre ressaltar ainda a concepção de escrita como trabalho (FIAD e MAYRINK-SABINSON, 1991), pois é ela que sustenta a reescrita como um momento essencial no processo da escrita. Essa compreensão deriva da concepção de linguagem como atividade e como trabalho expressa por Franchi (1987).
a linguagem é ela mesma um trabalho pelo qual, histórica, social e culturalmente, o homem organiza e dá forma a suas experiências.[...] [É] na interação social, condição de desenvolvimento da linguagem, que o sujeito se apropria [do] sistema linguístico, no sentido de que constrói, com os outros, os objetos linguísticos de que se vai utilizar; na medida em que se constitui a si próprio como locutor e aos outros como interlocutores. Por isso, essa atividade do sujeito não é somente uma atividade que reproduz: é, em cada momento, um trabalho de reconstrução.

Trata-se, portanto, de uma visão da escrita como uma construção que se processa na interação, e da reescrita como um momento que revela a dinamicidade desse processo. Assim, a escrita e a refacção de um texto trazem marcas de reelaboração que se constituem em espaço privilegiado para a observação do modo como a criança manipula a linguagem, com vários motivos, em diferentes momentos (no planejamento, durante a escrita, após a releitura e a reescrita). Essa concepção de reescrita é fundamental nas situações de ensino da língua porque permite modificar as representações das crianças sobre a escrita e, com reflexões pontuais, melhorar suas produções textuais. Possibilita ainda a análise dos processos individuais, compreendendo os alunos em suas trajetórias de aprendizagem.
As produções de textos analisadas foram obtidas nos atendimentos pedagógicos do Laboratório de Alfabetização da Faculdade de Educação da UFJF, coordenados por professoras-bolsistas dos cursos de Letras ou Pedagogia e realizados em dois encontros semanais, de 120 minutos cada, com grupos de 08 crianças. Para a presente análise, foram selecionados os textos de apenas uma das crianças atendidas no Laboratório de Alfabetização, no ano de 2010. Ela é uma menina de 10 anos e será referida pela letra inicial de seu nome – T..
 As atividades relacionadas à produção e refacção textual envolveram seis momentos: (1) leitura do livro de literatura A velhinha que dava nome às coisas; (2) reconto oral coletivo; (3) produção escrita de uma carta para a personagem principal do livro; (4) devolução da produção escrita juntamente com um bilhete orientador da professora-bolsista; (5) leitura do bilhete e revisão do texto para efetuar as mudanças necessárias, considerando os comentários da professora; (6) reescrita da carta pessoal.

A atitude responsiva no processo de produção e refacção textual
Na concepção bakhtiniana, o homem é tido como um ser social que só poder ser conhecido através de seus textos, de modo que os indivíduos, quando se comunicam, não trocam orações nem trocam palavras, mas trocam enunciados que se constituem com os recursos formais da língua, entretanto, nada impede que uma única palavra se constitua em um enunciado, pois não é a extensão da unidade da língua que a converte ou não em unidade de comunicação verbal.
Ao analisar os papéis dos sujeitos no diálogo que se dá no uso da língua, Bakhtin destaca a alternância de sujeitos falantes como a primeira particularidade constitutiva de enunciados. Quanto a isso, o autor assim se expressa:
o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, adapta-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de audição e de compreensão desde o seu início, às vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante. (BAKHTIN, 2003, p.271)

            Bakhtin ressalta que o ouvinte torna-se locutor, dado que a compreensão do enunciado é acompanhada de uma atitude responsiva ativa e toda compreensão é prenhe de resposta. Esses fatos são uma constante nos atendimentos pedagógicos do Laboratório de Alfabetização, porque os movimentos em torno das produções e refacções de textos são maneiras de propiciar essa dialogia de que fala Bakhtin. Na situação didática abordada nesse trabalho, o bilhete da professora, compreendido como um enunciado pleno, propõe percursos e evidencia o diálogo entre o leitor (professora-bolsista) e o autor (criança), por meio de comentários, perguntas, respostas e sugestões.
            Assim, responder a uma situação dialógica é ver-se manifestando no outro e vice-versa, ou seja, a professora e a criança possuem uma em relação à outra, uma espécie de excedente de visão que pode construir um novo espaço de interação em torno da produção de textos. É justamente esse ativismo em relação ao outro que abre espaços para novos saberes:
O excedente de minha visão em relação ao outro indivíduo condiciona certa esfera do meu ativismo exclusivo, isto é, um conjunto daquelas ações internas ou externas que só eu posso praticar em relação ao outro, a quem elas são inacessíveis no lugar que ele ocupa fora de mim; tais ações completam o outro justamente naqueles momentos em que ele pode completar-se (BAKHTIN, 2003, p.23)

 O princípio dialógico constitutivo da linguagem é aspecto fundante dos trabalhos de Bakhtin, pois o autor sempre defende que as palavras e os pensamentos se instauram através de várias vozes, ecoando cada uma de uma maneira diferente e ao mesmo tempo. É o que se manifesta nos exemplos a seguir:

 Texto 1 (produção inicial ):
Juiz de fora, 26 de março de 2010. MG
Dona Velinha
Velinha eu li o seu livro e gostei se você existe me da a sua foto se vosse me da a foto eu ficava muito feliz e me da o ceu enterenço o logal o numero e me fala o seu bairro e sua idade.
O ceu cachorrinho está vivo ainda e ele ainda come só biscoito, presunto e quejo?
Meu nome é tainara e eu li seu livro e gostei muito você.
Você é legal você já foi casado tem filho você gosta de griançae musica.
Gosta de dança e você já tem amigos( ) eu tenho 10 anos e você.
Eu tenho um peixe um cachorro e uns animais de pelusia e todos tem nome.
Eu sou uma menina legal estudiosa engrassada.
Você deve ser legal. Beijos!!
Obrigado.
quero ser modelo e veterinária
 T.
Texto 2 (refacção):
Juiz de Fora, 31 de março de 2010.
Para Dona Velina
Dona Velinha eu li o seu livro e gostei se você existe me manda a sua foto eu ficaria muito feliz e me da o ceu endereço o logal o numero e me falo o seu nome. O bairro e sua idade
O ceu cachorrinho está vivo ainda ele ainda come só biscoito, presunto e quejo?
Meu nome é tainara e eu tenho 10 anos gosto de dança de brinca e de joga bola.
Você já teve namorado já caso você gosta de dança costa de musica?
Eu gosto muito do seu texto e é muito legal deve ser rui sem nenhu amigo podemos ser amigos todos nos!
Eu gostei de você a senhora gosta de animais.
Eu tenho um cachorro e ele se chama Betove, tenho também um peixe e se chama, Lilica quero um ramister, tenho duas galinha um macho e uma femea o macho se chama Pedro e a femea se chama lindinha.
Bejos!!!
Ass: T.

Bilhete orientador da professora entregue para a criança realizar a revisão e refacção da produção inicial:
T.,
Quando a gente escreve uma pergunta, ela deve ter o ponto de interrogação no final, como por exemplo:
- O seu cachorrinho ainda está vivo?
- Você já foi casada?
Se você organizar as perguntas colocando o ponto de interrogação quando for necessário, a Dona Velhinha vai conseguir entender melhor o que você está perguntando.
Você poderia escrever mais sobre você para que a Velhinha te conheça e queira responder a sua carta.
Agora, chegou o momento de você reler o seu texto para depois reescrevê-lo. Não se esqueça de fazer as correções necessárias.
Bom exercício!

Pode-se verificar que a aluna faz uma reelaboração do seu texto pensando no destinatário da carta, no caso a personagem principal da história, Dona Velhinha, mas a partir do diálogo que estabelece com a professora, mediado pelo bilhete. Assim, a criança se desloca do papel de autor e assume a posição de leitor de seu próprio texto, numa atividade cooperativa de recriação do que foi dito, de preenchimento de lacunas, de desvendamento do que ainda estava oculto na produção inicial.
No decorrer do processo de refacção, a aluna efetuou três operações epilinguísticas, totalizando 28 modificações: 10 supressões, 07 substituições e 11 inclusões. Essas mudanças relacionam-se às solicitações da professora: “ter o ponto de interrogação no final” (linha 2), “organizar as perguntas colocando o ponto de interrogação” (linha 5) e “escrever mais sobre você” (linha 7).
Na passagem da 1ª para a 2ª escrita, verifica-se que a aluna efetua a supressão de palavras e frases com o objetivo de reordenar informações a seu respeito para o destinatário da carta, atendendo a solicitação da professora (escrever mais sobre você). A professora busca fazer com que a criança reflita sobre o que escreveu e procura convencê-la de que o interesse do destinatário da carta pode ser despertado a partir do que o texto diz (para que a Velhinha te conheça e queira responder a sua carta). Com base nesse diálogo, a criança se preocupa com a constituição do enunciado e responde ativamente ao que foi solicitado, eliminando alguns trechos (eu tenho ... animais de pelusia, eu sou uma menina legal estudiosa engrassada ... quero ser modelo e veterinária).
As inserções realizadas na 2ª escrita também atendem ao bilhete da professora, pois se referem tanto aos sinais de pontuação quanto ao acréscimo de novas informações, buscando a construção de uma relação mais íntima com o destinatário da carta.
Dessa forma, o bilhete da professora tem um papel fundamental na construção do sentido, quer dizer, as mudanças efetuadas na reescrita revelam o encontro dos sentidos e como as duas foram afetadas de diferentes formas e novos sentidos surgiram, daí afirmar-se que natureza do sentido é responsiva. Nos textos analisados, a criança, ao perceber e compreender o significado dos comentários da professora, ocupa um posição responsiva: concorda, discorda, completa, elimina ... A criança e a professora marcam posição no seu discurso e, na medida em que os discursos se intercalam, estabelecem uma relação dialógica.
Levanta-se a hipótese de que, devido aos poucos comandos dados pela professora no bilhete, a aluna conseguiu um melhor desempenho no processo de refacção. Ela analisou os comentários do bilhete, ajustou seu texto ao destinatário e incluiu informações de forma a garantir uma proximidade com a Dona Velhinha. Acredita-se que o bilhete orientador, elaborado após a 1ª escrita, mostrou-se excelente instrumento para promover a reflexão da aluna, pois ela desenvolveu a perspectiva crítica em torno de seus próprios escritos, construindo, assim, novos conhecimentos sobre as regras de organização interna da escrita.

 Considerações finais
A análise indiciária das correções e apagamentos deixados por T. revelou que as provocações de refacção efetuadas professora, contribuíram para que a aluna compreendesse que a reescrita dos seus textos precisava ser feita de maneira mais fina, com alterações pontuais no que concerne aos aspectos linguístico-discursivos. Certamente, a vivência de T. em torno de práticas de produção e refacção textual desenvolverá a perspectiva crítica de seus próprios escritos e a conquista de maior competência discursiva.
Os momentos em que a aluna teve a oportunidade de dialogar com a professora sobre os pontos mais nebulosos de seu texto, solicitando-lhe explicações ou sugestões, foram decisivos na atividade de refacção, já que, como alertava Bakhtin (2003), a interação verbal constitui realidade fundamental na língua. Segundo o autor, a experiência verbal do sujeito evolui sob o efeito da interação contínua e permanente com os enunciados alheios, acontecimento que foi demonstrado pela presente análise. Quer dizer, mecanismos sociais e interativos transformam enunciados, neste trabalho, produções escritas. T. não apenas escutou e “acatou” as instruções da professora, mas ela própria reavaliou seus textos, refletindo sobre eles para realizar as mudanças necessárias, tendo em vista as aprendizagens construídas. Recupera-se, então, a teoria bakhtiniana, quando esta explicita que todo autor responde a algo, retoma enunciados, concorda com algo ou refuta enunciados anteriores.
A abordagem de correção de textos definida pela professora abriu a possibilidade de devolução da palavra ao sujeito e mostrou para a criança os caminhos para construir o seu projeto de dizer, assegurando a liberdade de expressão e potencializando a imaginação por meio da troca dialógica. Esse movimento de rearticulação de saberes oportunizou o aparecimento de um sujeito singular, que vai ganhando voz, tornando-se autor do próprio discurso e produzindo condições de responsividade.
Defende-se, então, a construção de modelos didáticos que possibilitem a manifestação da criança, para que deixe de ser um aluno que só ouve em silêncio, para se tornar um sujeito que age, que também ouve, e recria-se pela incorporação dos outros, polifonicamente.

Referências
ABAURRE, M. B. M. ; FIAD, R. S.; MAYRINK-SABINSON, M.L.T. Cenas de aquisição da escrita: o sujeito e o trabalho com o texto. Campinas: Mercado das Letras, 1997.  
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FIAD, R.S.; MAYRINK-SABINSON, M.L.T. A escrita como trabalho. In: Martins, M. H. (org.). Questões da Linguagem. São Paulo: Contexto, 1991. p 54-63.
FRANCHI, C. Criatividade e Gramática. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, nº 9, 1987. p 05-45. 
GINZBURG, C. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In:.______Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p 143-179. 

Um comentário:

  1. Parabéns professora, adorei, agora que descobri seu blog sou seguidora . abraços

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