quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Lucia F. Mendonça Cyranka

O signo segundo bahktin e o trabalho escolar com a linguagem 
Lucia F. Mendonça Cyranka (UFJF)
           
Neste encontro, trago, novamente, a reflexão sobre o trabalho escolar com a linguagem como a questão que me inquieta. Como formadora de professores da disciplina Língua Portuguesa, preocupa-me a necessidade de se fundamentar esse trabalho numa concepção adequada de ensino e dos instrumentos a serem utilizados nessa tarefa. Percebo, nos conceitos bakhtinianos sobre linguagem, signo e enunciação e suas consequências epistemológicas, uma orientação segura para se desestabilizar a tradição nesse setor das ciências humanas, que não tem construído uma resposta responsável, no seu papel de levar o aluno ao desenvolvimento de competências de uso de linguagem, portanto de seu papel de promover uma educação libertadora (FREIRE, 2008).  
            Quero, no entanto, aprofundar a busca desses fundamentos e, especialmente, discutir um dentre os aspectos aduzidos por Bakhtin nas suas considerações sobre a linguagem.
Antes de mais nada, portanto, considero inadmissível, conforme já muito denunciado, o fato de as escolas de Ensino Fundamental continuarem centrando seu trabalho com a linguagem na descrição das estruturas da língua, como se fosse ela um simples sistema pronto e acabado, imutável, ou no ensino prescritivo, a partir de usos considerados ideais, ainda que em contradição com aqueles efetivamente praticados pelos falantes da língua portuguesa. Isso ficou claro a partir da revisão do conceito de linguagem e enunciação proposta por Bakhtin. Quem pretende um trabalho de educação escolar efetiva de crianças e jovens conclui, estudando Bakhtin, que “o rei está nu”. Incomoda, verdadeiramente, que todo nosso sistema de ensino não tenha ainda se reestruturado para tornar eficientes as práticas escolares de linguagem que transformem a simples repetição em seleção e construção crítica, a audiência passiva em protagonismo ativo, o automatismo estéril em criatividade progressista.
A concepção bakhtiniana de signo verbal torna clara essa questão. Bakhtin esclarece (2006, p. 96) que, segundo o ponto de vista do locutor, o que importa não é a forma linguística, que é sempre igual a si mesma, mas “[...] aquilo que permite que a forma linguística figure num dado contexto, aquilo que a torna um signo adequado às condições de uma situação concreta dada.” Compreender a forma verbal, no seu contexto, levando em consideração as circunstâncias particulares da enunciação, nisso consiste a depreensão do signo verbal. No signo está o conteúdo ideológico da enunciação; nele se pode depreender as implicações particulares do posicionamento do locutor diante do episódio em questão.
É muito produtiva a oposição entre sinal e signo trazida pelo autor dentro da oposição língua materna/língua estrangeira. A sinalidade existe apenas na língua estrangeira, onde os signos não são ainda percebidos como tais. Na língua materna, ao contrário, “o sinal e o reconhecimento estão dialeticamente apagados”. 
Esse esclarecimento nos fazer perceber, sem dificuldade, o quanto a nossa língua portuguesa é ainda tratada, na escola, como língua estrangeira. Os exercícios repetidos de identificação das classes de palavras, das funções sintáticas, das regras de colocação dos pronomes oblíquos, as listas de verbos irregulares, anômalos, defectivos, juntamente com a identificação dos tempos e modos verbais, etc, tudo isso feito de maneira isolada e com um fim em si mesmo, sem a busca, por exemplo, dos efeitos discursivos dessas diferentes estruturas que podem e devem ser utilizadas, constitui não apenas tradição, mas prática ainda atual e, frequentemente, defendida na escola. A isso se somam a obsessão dos ditados, para surpreender o aluno cometendo erros ortográficos, a produção de textos sem o apoio do conhecimento dos gêneros textuais e sua inserção nas práticas discursivas da sociedade, lugar, por excelência da construção das ideologias quer permeiam as produções orais e escritas dos usuários da língua. O resultado é o tratamento insípido da língua, que se torna uma disciplina desinteressante. Os alunos perdem seu tempo na escola, quando ali se encontram para serem orientados no desenvolvimento de capacidades mais refinadas, a partir de competências que já dominam inteiramente.
Penso aqui na educação libertadora de que nos fala Paulo Freire (2008). Para ele, o educador libertador tem que estar atento para o fato de que a transformação não é só uma questão de métodos e técnicas, mas é uma questão de “estabelecimento de uma relação diferente com o conhecimento e com a sociedade.” (p. 48). A escola acostumou os alunos a uma aprendizagem passiva, não questionadora. Ele afirma (p. 36): “O sistema escolar convenceu muitos estudantes de que a escola não os levava a sério e, por isso, deixaram de ser sérios na escola. Certos estudantes não conseguem superar o desgosto que adquiriram com o trabalho intelectual na escola.”
Do ponto de vista do trabalho com a língua, isso acontece por causa da adoção de uma equivocada concepção de linguagem. Sem dúvida, Bakhtin iluminou essa questão, ampliando as reflexões sobre esse objeto, situando-o numa dimensão muito maior do que a que vinha sendo adotada pela tradição dos estudos nessa área do conhecimento, e continua sendo, na maioria das vezes, nas escolas brasileiras.
Para Bakhtin, é inerente à dinamicidade da linguagem uma atitude responsiva, uma participação ativa na construção do diálogo, para o que, a compreensão é indispensável. Ele afirma (p. 137: “A compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra. Nesse caso, a significação não está na palavra em si, mas “...no efeito da interação entre o locutor e o receptor produzido através do material de um determinado complexo sonoro. É como uma faísca elétrica que só se produz quando há contato dos dois polos opostos.” E acrescenta: “Só a corrente da comunicação verbal fornece à palavra a luz da sua significação.”
Se a escola compreende bem o que seja a enunciação e adota esse ponto de vista no trabalho com a linguagem, tem garantida a inserção do aluno nas práticas de letramento libertadoras.
Há um outro aspecto aduzido por Bakhtin (op. cit.) que amplia essa questão. Trata-se do estudo da apreciação como um dos fatores importantes na construção da significação, um “acento de valor”. Ele explica (p. 137): “[...] quando um conteúdo objetivo é expresso (dito ou escrito) pela fala viva, ele é sempre acompanhado por um acento apreciativo determinado. Sem acento apreciativo não há palavra.” A entoação expressiva, ele ensina, é o mecanismo que o falante utiliza para expressar sua apreciação.
Volto, novamente, à realidade da sala de aula e constato a negligência da escola também nesse aspecto, quando, além de não promover situações reais para os alunos se expressarem oralmente ou por escrito, de modo que possam se posicionar diante das questões da vida, dentro e fora da escola, costuma desencorajá-los, desqualificando, sumariamente, o que dizem ou escrevem, a partir de critérios puramente formais. Nesse caso, conseguem apenas uma linguagem neutra, desprovida de responsividade, isto é, de sentido construído no mergulho na sua própria experiência vivenciada.
A questão da apreciação implica seriamente na construção da subjetividade, no reconhecimento da identidade do aluno como sujeito responsável por seu destino. A mim parece que, nesse particular, as atividades didáticas com a disciplina Língua Portuguesa estão longe de criar oportunidades para que os alunos tomem consciência desse recurso expressivo para dele se utilizarem amplamente, na interação com seu interlocutor. Sendo as práticas de oralidade raras na escola, deixam de constituir material riquíssimo para a observação e análise desse recurso apontado por Bakhtin. Imagino que um bom começo seja, exatamente, a eleição da comunicação oral como recurso para se praticar a identificação dos valores apreciativos da enunciação e dos recursos utilizados nessa produção, o tom de voz, a altura, o timbre, os trejeitos corporais.
Isso me levou ao que Bourdieu (apud HANKS, 2008, p. 42-43) denomina habitus, isto é, a incorporação do social nos usos corporais do falante. “De um ponto de vista linguístico, o habitus corresponde à formação social dos falantes, o que inclui a disposição para determinados tipos de uso linguístico, para avaliá-los segundo valores socialmente internalizados e para incorporar a expressão ao gesto, à postura e à produção da fala.” 
Percebo no habitus um apoio decisivo para se perceber a apreciação de que fala Bakhtin. De tal modo que a mesma sentença pode constituir diferentes enunciados, pode apontar para diferente conteúdo ideológico, conforme seja produzida segundo tal ou qual expressão corporal. Aí está uma resposta importante da escola na sua responsabilidade de ampliar o acesso dos alunos a lugares sociais que lhes interessam incorporar. Torná-los capazes de perceber o tom apreciativo dos enunciados do seu interlocutor e, por sua vez, de imprimir ao seu próprio enunciado a apreciação requerida pelo seu discurso, eis um dos efeitos de uma educação libertadora.
Marca decisiva do desenvolvimento dessa competência se pode perceber na resposta da escola aos dialetos sociais dos alunos, especialmente, é claro, àqueles desprestigiados. Interessante notar que, realmente, falantes pertencentes a redes sociais diferentes carregam habitus diferentes. Nesse particular, percebo como questão urgente a ser investigada o tratamento dado pela escola a esses dialetos desprestigiados na sociedade, mas falados por seus alunos, por serem eles o vernáculo dos grupos sociais de onde se originam. Aqui se aprofunda um grave conflito, caso a escola não saiba lidar com a diferença e permaneça cristalizada numa concepção equivocada de língua e linguagem. Mais significativo ainda é percebermos que, se ao longo da vida escolar, essas expressões não se modificam, esses alunos vão sendo excluídos, ou vão se excluindo, buscando permanecer apenas no seu espaço social de origem, sem acesso àqueles outros pelos quais almejam transitar. Essa é uma resposta da escola não responsável.
Podemos considerar quantas respostas não são dadas, quantas outras não são compreendidas, quantas deixam de ser explicadas, ainda que pressentidas, porque a apreciação não foi depreendida, a entoação expressiva não foi valorizada. Trago de novo o que disse Bakhtin (op. cit. p. 137): “Sem acento apreciativo não há palavra”.
Que a educação escolar se torne capaz de ouvir mais e dizer menos, que se transforme em interlocutora, deixando que o protagonismo seja do aluno! Essa será uma resposta responsável da escola!

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
FREIRE, Paulo, SCHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Trad. Adriana Lopez. 12.ed.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.
HANKS, William F.  Língua como prática social: das relações entre língua, cultura e sociedade a partir de Bourdieu e Bakhtin.  São Paulo: Cortez, 2008.

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