quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Janaína Silva Costa Antunes

As vozes e os silêncios como potencialidade para o pesquisador
Janaína Silva Costa Antunes[1]

     Este texto é resultado de reflexões feitas a partir de nossa pesquisa de mestrado que investigou as práticas de leitura nas séries iniciais em uma escola pública do sistema público municipal de Vitória, Espírito Santo, em 2010. A investigação constituiu-se em um estudo de caso de caráter qualitativo que se realizou a partir do acompanhamento de quatro turmas das séries iniciais do ensino fundamental. Cada turma foi observada por dois meses com a frequência de três aulas por semana, o que totalizou um período de oito meses de inserção em campo. Foram sujeitos da pesquisa os 108 alunos das quatro turmas e as quatro professoras das turmas.
     A metodologia de pesquisa utilizada foi o estudo de caso qualitativo e se concretizou por meio de observação participante, anotações em diário de campo, entrevistas, gravações de áudio e vídeo das aulas. Os dados levantados nos levaram a refletir acerca das respostas dadas pelos envolvidos na pesquisa, buscando compreender as vozes e os silêncios presentes nas relações entre os sujeitos. Buscamos perceber o discurso que permeava as concepções de leitura dos envolvidos, sem deixar de levar em conta a responsividade, isto é, a forma como os interlocutores (no caso, as professoras) produziram suas respostas a partir de suas concepções. Pensamos que esse conceito que não pode ser dissociado de acordo com a perspectiva que orientou a pesquisa.
     Para este texto, selecionamos algumas das respostas que consideramos pertinentes ao tema proposto. Entre as mais de 20 questões elaboradas com a intenção de levantar dados que pudessem potencializar nossas reflexões sobre as práticas de leitura, selecionamos cinco questões feitas para as professoras, cujas respostas consideramos significativas para nossa análise.
     A primeira pergunta era se gostavam de ler (pergunta 1), além disso, questionamos se dedicavam tempo para o planejamento de atividades de leitura (pergunta 2). Todas as professoras afirmaram que gostavam de ler e dedicavam tempo para esse tipo de atividades em seus planejamentos.
     Perguntamos ainda se a escola em que trabalhavam demandava que lessem algum material (pergunta 3), todas afirmaram que em nenhum momento tinham tempo disponível para esse fim, todo o tempo que tinham disponível era destinado à preparação de atividades para utilização em sala.
     Podemos perceber nas vozes que emergem das falas das professoras uma preocupação em confirmar a importância da leitura em suas vidas profissionais. Dessa forma, de acordo com Bakhtin (1993, p. 100)
[...] a língua não conserva mais formas e palavras neutras “que não pertencem a ninguém”; ela torna-se como que esparsa, penetrada de intenções, totalmente acentuada. [...] Cada palavra evoca um contexto ou contextos, nos quais ela viveu sua vida socialmente tensa; todas as palavras e formas são povoadas de intenções. [...] A linguagem não é um meio neutro que se torne fácil e livremente a propriedade intencional do falante, ela está povoada ou superpovoada de intenções de outrem. 
     Nesse sentido, podemos supor que suas falas estavam repletas de intenções em atingir a expectativa do pesquisador em ouvir que gostavam de ler e que dedicavam tempo para planejamento de atividades de leitura. Fosse de outra forma, ou seja, se a leitura fosse colocada em segundo plano nas vozes dos sujeitos da pesquisa, o pesquisador poderia supor que as práticas de leitura não ofereciam boas possibilidades na formação do leitor. Além disso, não podemos esquecer que à leitura sempre coube um valor de prestígio em nossa sociedade. Dessa forma, não podemos desconsiderar que as falas das professoras também são habitadas por esse imaginário.
     Por outro lado, mesmo que suas vozes afirmassem tal sentimento positivo em relação à leitura, verificamos que os eventos de práticas de leitura observados no período de inserção em campo não foram tão numerosos se levarmos em conta o tempo em que ficamos em cada turma. O quadro a seguir contabiliza as práticas de leitura observadas em cada turma.

Turmas
Total de eventos de
práticas de leitura registrados
1ª série
48
2ª série
29
3ª série
36
4ª série
45
Total
158

     Se considerarmos que o período de observação em cada turma foi de dois a três dias semanais por dois meses, concluímos que, em cada sala, um número pequeno de atividades voltadas para a leitura foi realizado semanalmente.
    A pergunta 4 buscou saber que pontos as professoras consideravam  positivos e negativos do trabalho com a leitura na escola na qual atuavam. Como ponto positivo, todas as professoras destacaram a biblioteca ampla com a qual contavam. Como pontos negativos, tivemos como resposta: falta de participação das famílias (uma professora), falta de apoio nos projetos (três professoras), falta de espaços alternativos para leitura (duas professoras) e falta de melhor organização no espaço/tempo da biblioteca da escola (duas professoras).
     Pensamos ser interessante pontuar como positivo o papel da biblioteca no ambiente escolar. Concordamos com a visão das professoras, pois naquela escola, as crianças, além dos horários estipulados para a turma, podiam livremente adentrar o espaço, excetuando-se o horário do recreio, para manusearem/lerem os livros. Contraditoriamente, um dos pontos negativos sinalizados por duas professoras, foi a falta de melhor organização do espaço/tempo da biblioteca. Devemos sinalizar que nenhuma sugestão para melhor aproveitamento desse tempo foi proposto pelas professoras. Pensamos poder considerar esse dado como um silêncio potente para análise por parte do pesquisador. Quando apontamos problemas e nos calamos diante das possibilidades de resolução, estamos contribuindo para a manutenção das mesmas impossibilidades. Atuar responsivamente requer a busca de propostas que possam promover, no caso específico da pesquisa em educação, possibilidades de construção de sentidos aos envolvidos na ação educativa.   
     Percebemos também que os outros pontos negativos anteriormente citados (falta de participação das famílias, falta de apoio nos projetos e falta de espaços alternativos para leitura) revelam que as professoras apontam dificuldades que estão além de sua capacidade de resolução, ou seja, dependem de ação de outros para serem solucionados. Dessa forma,
O papel dos outros, para quem se constrói o enunciado, é excepcionalmente grande, como já sabemos. Já dissemos que esses outros, para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo também para mim mesmo), não são ouvintes passivos, mas participantes ativos da comunicação discursiva. Desde o início, o falante aguarda a resposta deles, espera uma ativa compreensão responsiva. É como se todo o enunciado se construísse ao encontro dessa resposta. (BAKHTIN, 2006, p.301)

     Nessa direção, aparentemente, as professoras atribuem essas dificuldades a outros e parecem aguardar que esses outros possam atuar na solução das dificuldades. Não queremos com isso justificar as dificuldades no desenvolvimento das atividades pedagógicas, nem culpabilizar as professoras ou outros sujeitos que poderiam atuar nesses eventos. Porém, cabe destacar que há também uma parte que cabe ao professor no que diz respeito ao investimento em uma prática pedagógica ancorada na produção de sentidos pelos sujeitos em sala de aula. 
     A pergunta 5 buscou saber sobre o que esperavam de seus alunos como leitores, obtivemos como respostas: que sejam leitores independentes e que consigam compreender o mundo em que vivem (uma professora); que consigam ter visão crítica da realidade (uma professora) e que consigam ler e entender o que leem (duas professoras). A partir das respostas, podemos afirmar que as professoras esperam que a compreensão/visão crítica da realidade seja a finalidade maior da leitura. 
     Dessa forma, ao examinarmos mais atentamente o que ouvimos nas falas das professoras propomo-nos a fazer um exercício de escuta dos silêncios percebidos nos eventos durante o período de inserção. Referimo-nos ao silêncio percebido nas práticas quando a leitura simplifica-se à busca de respostas no texto e à realização de tarefas, ou mera compreensão dos textos lidos. Como auxiliar as crianças a serem críticas, se no cotidiano escolar não se aprende a criticar, fazer relações e ir além do texto? Será essa a compreensão ativa e responsiva que esperamos? Com certeza, não. Nesse sentido, Bakhtin (2006, p.377/378) afirma que a compreensão vai além da extração das ideias do autor de um texto quando afirma:
Não se pode interpretar a compreensão como passagem da linguagem do outro para a minha linguagem. [...] Mas a compreensão pode e deve ser melhor. A criação poderosa e profunda em muitos aspectos é inconsciente e polissêmica. Na compreensão ela é completada pela consciência e descobre-se a diversidade dos seus sentidos. Assim, a compreensão completa o texto: ela é ativa e criadora. A compreensão criadora continua a criação, multiplica a riqueza artística da humanidade. A co-criação dos sujeitos da compreensão.
    
Nesse sentido, pelo constatado nos eventos registrados em nossa pesquisa, podemos afirmar que a compreensão esperada pelas práticas não é entendida dessa forma, pois as atividades relacionadas à leitura resumiam-se à identificação das ideias do autor ou o uso de textos para aprendizagem da gramática da língua, isto é, os textos nas salas de aula eram concebidos para servirem de pretextos para realização de tarefas basicamente. A responsividade ficava relegada ao segundo plano.

Considerações finais
     Este texto se propôs a pensar nas vozes e silêncios percebidos durante o período de inserção em campo. Como podemos observar, esse tipo de análise é potencializada quando podemos cotejar os discursos com as práticas de leitura que se desenvolvem no espaço educativo. A produção de enunciados pressupõe os que o antecedem e o sucedem. Nenhum enunciado pode ser o primeiro e o último (BAKHTIN, p.2006, p.371). Se por um lado, o enunciado se liga aos enunciados passados e futuros, por outro, ele responde a enunciados que se realizam nas situações concretas de sua produção, ou seja, eles são, sobretudo, o resultado da relação que se restabelece face a face entre os interlocutores.
     Nas relações com a pesquisadora ou considerando o enunciado como elo de uma cadeia discursiva mais ampla (discurso sobre o valor da leitura), as professoras buscaram responder aos questionamentos sem se desviarem do que já está posto ou do que pensam do que se espera ser ouvido delas. Porém, o discurso por elas produzido esconde as reais condições em que se desenvolve a leitura nas suas salas de aula, produz uma falsa realidade. Dessa forma, podemos concluir que a linguagem não é transparente, não mostra tudo.  
     Destacamos as vozes audíveis das professoras nas entrevistas propostas e, também, buscamos os silêncios percebidos no cotidiano escolar. Silêncios que se mostraram, de acordo com nossa percepção, quando o tempo de planejamento dedicado às atividades de leitura é insuficiente ou aproveitado sem maior aprofundamento dos sentidos gerados pelos textos; quando concretizam práticas que são contraditórias em relação ao seu próprio discurso ou ainda quando percebemos falta de planejamento nas propostas de leitura trazidas para sala de aula e, finalmente, quando esperam que seus alunos possam atuar criticamente em sociedade, mas não são oferecidas oportunidades desse exercício do dizer. Sendo assim, acreditamos que todo e qualquer pesquisador deve exercitar uma escuta sensível dos eventos que se presentificam, por meio das vozes ou dos silêncios dos envolvidos durante o período de inserção.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 3. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1993.


[1] Mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo da linha de pesquisa Educação e Linguagens. Prof. de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico em exercício no Centro de Educação Infantil Criarte/UFES.

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