quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Bruna dos Anjos da Costa Crespo, Leticia Macedo Kaeser

Gêneros textuais e ensino: uma perspectiva bakhtiniana da linguagem
Bruna dos Anjos da Costa Crespo (UFJF)
brunacrespo.ufjf@gmail.com
Leticia Macedo Kaeser (UFJF)
leticiamkaeser@yahoo.com.br

Uma concepção sociointeracionista da linguagem

Toda língua são rastros de velho mistério. [1]
(Guimarães Rosa)

Mikhail Bakhtin, embora não possuísse formação na área, revolucionou o campo da Linguística no século XX, elaborando noções e conceitos para a análise da linguagem materializada em discursos cotidianos, artísticos, filosóficos e institucionais, entre outros. Ele foi um dos mais destacados pensadores de um grupo - que incluía o linguista Valentin Voloshinov e o teórico literário Pavel Medvedev - cujo foco de estudo era as formas de analisar linguagem.
O Círculo de Bakhtin - como ficou conhecido o grupo - concebeu a linguagem como um constante processo de interação social mediado pelo diálogo, e não apenas como um sistema autônomo. Nessa concepção, a língua se concretiza em função do uso que locutores (falante ou escritor) e interlocutores (leitor ou ouvinte) fazem dela em situações comunicativas. Sobre a concepção bakhtiniana da linguagem, Freitas nos explica que o filósofo
Considerou que o fato lingüístico não pode ser entendido apenas como uma realidade física, mas que seria necessário inseri-lo na esfera social, para tornar-se um fato de linguagem, compreendendo como indispensáveis a unicidade do meio social e a do contexto social. (FREITAS, 1995, p.132)

Em uma visão crítica, o autor contrapõe-se a uma abordagem linguística dicotomizante (em que a língua é o objeto central e a fala, apenas ato individual), demonstrando que a linguagem tem caráter sócio-histórico e integra-se à vida humana.
Segundo Bakhtin, a linguagem tem origem histórico-social. Ele afirma, ainda, como núcleo da realidade lingüística o caráter interacional da linguagem, que se constitui a partir da necessidade comunicativa dos indivíduos. Essa comunicação é compreendida em relação ao aspecto contextual e não apenas lingüístico, concretizando-se pelo que Bakhtin chamou de enunciado.
Para o autor, o enunciado, sendo constituído de elementos verbais e extra verbais (tom de voz, olhar etc), representa a concreta e real unidade de comunicação discursiva, diferenciando-se de oração, que é considerada como unidade da língua. Assim, o discurso – e seus gêneros - só pode existir na forma de enunciados concretos e singulares, pertencentes aos sujeitos discursivos de uma esfera de atividade e comunicação humanas (BAKHTIN, 2003).
De acordo com o filósofo, a linguagem é dialógica porque procede da enunciação de alguém para outro alguém. Ou seja, a comunicação se efetiva por meio da interação verbal, que se materializa por meio dos enunciados. A esse respeito, Souza salienta que
O valor do enunciado não é determinado pela língua, como sistema puramente lingüístico, mas pelas diversas formas de interação que a língua estabelece com a realidade, com o sujeito falante e com outros enunciados, que, por assim dizer, são verdadeiros, falsos, belos... (BAKHTIN,1985a apud SOUZA,1996, p. 102)

Nesse sentido, a linguagem é considerada como resultado da atividade humana coletiva, refletindo, em uma perspectiva dialógica, todas as esferas da vida social (política, econômica, etc.) e tornando-se condição necessária para a organização produtiva da vida em sociedade.

Gêneros textuais e ensino de LP: uma proposta a partir de Bakhtin
Desde que a concepção bakhtiniana de linguagem começou a circular no âmbito linguístico acadêmico, o ensino de Língua Portuguesa com base em gêneros textuais vem sendo defendido. Segundo Bakhtin, todos os diversos campos da atividade e da interação humanas estão ligados ao uso da linguagem.
Assim, considerando a linguagem produto da interação verbal, materializada nos enunciados cujos usos serão determinados por contextos sociais específicos, Bakhtin define os gêneros discursivos como manifestações das várias características de enunciados (orais e escritos), destacando que “cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2003, p.262).
Marcuschi, associando as concepções bakhtinianas ao ensino de Língua Portuguesa (LP), amplia a definição de gêneros textuais como
textos materializados em situações comunicativas recorrentes. Os gêneros textuais são os textos que encontramos em nossa vida diária e que apresentam padrões sociocomunicativos característicos definidos por composições funcionais, objetivos enunciativos e estilos concretamente realizados na integração de forças históricas, sociais, institucionais e técnicas... Alguns exemplos de gêneros textuais seriam: telefonema, sermão, carta  comercial, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem (...) (MASCUSCHI, 2008, p. 155). [2]

De acordo com o autor, entende-se por gêneros textuais modelos discursivos (orais ou escritos) que organizam o funcionamento da sociedade, possuindo padrões formais e funcionais. Desse modo, é nosso conhecimento e reconhecimento dos mesmos que nos permite a comunicação adequada em contextos específicos.
Para Bakhtin, apreendemos o funcionamento da língua – inclusive o uso adequado dos gêneros textuais - em um processo interativo, e não em manuais de gramática, destacando que
a língua materna, seu vocabulário e sua estrutura gramatical, não conhecemos por meio de dicionários ou manuais de gramática, mas graças aos enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos na comunicação efetiva com as pessoas que nos rodeiam. (BAKHTIN, 2003, p. 326)

Em vista disso, pode-se dizer que o ensinamento e o aprendizado de como empregar a linguagem implicam necessariamente os sujeitos da interação – considerados aqui como agentes das relações sociais e responsáveis pela composição e pelo estilo dos discursos. Esses sujeitos são influenciados pelo conhecimento de enunciados anteriores para formular suas falas e redigir seus textos, adequando-se ao contexto social, histórico, cultural e ideológico.
Em uma perspectiva bakhtiniana, o ensino da língua adequado aos usos sociais do discurso – oral e escrito - torna-se fundamental, ao capacitar o indivíduo ao domínio dos gêneros do discurso adequadamente às várias e diferentes esferas sociocomunicaticas.
Vale ressaltar que o ensino de LP através do trabalho com gêneros textuais em sala de aula está previsto como proposta em documentos oficiais do governo brasileiro. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de LP,
 Tomando-se a linguagem como atividade discursiva, o texto como unidade de ensino
e a noção de gramática como relativa ao conhecimento que o falante tem de sua linguagem, as atividades curriculares em Língua Portuguesa correspondem, principalmente, a atividades discursivas: uma prática constante de escuta de textos orais e leitura de textos escritos e de produção de textos orais e escritos, que devem permitir, por meio da análise e reflexão sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a expansão e construção de instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente, ampliar sua competência discursiva. (BRASIL, 1998, p.106)

 Ainda de acordo com a proposta dos PCNs, a noção de gêneros refere-se a “famílias de textos que compartilham características comuns” (BRASIL, 1998, p.22). Seriam, dessa forma, “espécies” de textos com características comuns aprendidas por meio da convivência social. Cada espécie possui formato próprio, circula em determinado portador ou suporte, usa estilos de linguagem específicos e funciona em determinado contexto social.
Outro fator relevante no ensino baseado nos gêneros textuais é a diversidade infinita destes. Como nos afirma Bakhtin, são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana. Sendo assim, cabe ao professor – no papel de mediador – selecionar os mais relevantes ao grupo social composto por sua turma. 
Além de reconhecer, definir e classificar os gêneros diversos, é necessário que o aluno compreenda em qual situação cada um lhes será útil. Para tanto, é fundamental a mediação do professor nas atividades de leitura, escuta e produção textual (escrita ou oral) de gêneros em contextos sociais simulados em sala de aula. Como exemplifica Brait (2006), "Não há receita pronta. Se o aluno não ler muita poesia, dificilmente será capaz de escrever uma respeitando as marcas do gênero".

Considerações finais
O presente trabalho teve como propósito incentivar o professor de LP a refletir sobre a concepção de linguagem que norteia suas práticas pedagógicas, apresentando a concepção sociointeracionista discursiva, que acreditamos ser a mais adequada, uma vez que nela se enfoca os usos discursivos da língua de acordo com o funcionamento interativo da sociedade.
Nesse sentido, sob a perspectiva bakhtiniana, sugerimos um ensino de LP orientado pela abordagem de gêneros textuais em sala de aula, pois entendemos que, amadurecidas as proficiências de leitor, ouvinte, escritor e falante, o aluno será capaz de agir adequadamente nas diferentes esferas sociais. Desse modo, o ensino de caráter social, voltado para o uso dessas competências de linguagem do aluno, fomentará a ampliação do domínio discursivo dos falantes e sua inserção efetiva no mundo da escrita. 

Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Trad.: Paulo Bezerra.
BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos –chave. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2006. 
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental, v. 2, 1997.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais : terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental. Brasília : MEC/SEF, 1998.
FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Vygotsky & Bakhtin, Psicologia e educação: um intertexto. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1995.
MARCUSCHI, Luiz Antonio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. 2ª ed. Rio de janeiro: Parábola, 2008.
SOUZA, Solange Jobim e. Infância e Linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. 3ª ed. Campinas: Papirus,1996.


[1] ROSA, João Guimarães. Ave, palavra. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.
[2] Conforme Marcuschi, adotamos o termo gêneros textuais para fazer referência ao conceito bakhtiniano de gêneros do discurso neste trabalho.

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