quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Andréa da Silva Pereira, Paulo Rogério Stella

Atitude responsiva no ensino de línguas em Comunidades de Maceió
Andréa da Silva Pereira — UFAL
Paulo Rogério Stella — UFAL

A presente discussão coloca em foco questões acerca do processo de ensino-aprendizagem de línguas, materna e estrangeira, para jovens adultos da Comunidade do Bom Parto, localizada na cidade de Maceió, à luz do pensamento bakhtiniano. O trabalho no contexto das comunidades de baixa renda constitui uma atividade de extensão universitária e está vinculado ao Grupo de Estudos Ensino e aprendizagem de línguas, pertencente à Faculdade de Letras (FALE) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).  As ações e os detalhes dessa atividade de extensão estão contidos no Projeto de Ensino/Aprendizagem de Línguas em Maceió, que articula “três dimensões: a pesquisa no plano linguístico-discursivo, a oferta de cursos de extensão em Língua Inglesa e em leitura e produção de textos em Língua Portuguesa a comunidades da cidade de Maceió e a contribuição para aprofundamento da formação de alunos graduandos, recém-graduados e pós-graduandos enquanto professores e pesquisadores das línguas mencionadas”. (Projeto de Ensino/Aprendizagem de Línguas, p. 1).
Um dos objetivos do projeto está diretamente atrelado à noção teórica da responsividade em Bakhtin, a saber: “identificar e classificar indícios de compreensão e produção ativas, no plano linguístico-discursivo, na constituição de uma autonomia relativa do sujeito leitor e produtor de textos, através das diversas atividades de sala de aula”. (Projeto de Ensino/Aprendizagem de Línguas, p. 4). É justamente a questão da atitude responsiva no ensino de línguas que tange duas inquietações que a seguir serão apresentadas como problema de pesquisa para entrar no debate deste I Encontro de Estudos Bakhtinianos.
A primeira inquietação aponta para o papel das imagens da norma culta na interação verbal entre professor/alunos/aula de leitura e produção de texto em língua portuguesa como um elemento constitutivo para a construção de uma autonomia relativa do sujeito leitor e produtor de textos. As imagens da norma são as representações subjetivas que os falantes têm da língua. Dependendo de quais sejam essas imagens circulantes nos discursos dos sujeitos no contexto de sala de aula, o processo de ensino-aprendizado de língua não só pode ser infrutífero, como também pode chegar a ter um efeito nocivo para o projeto de uso efetivo da norma culta. As imagens são frutíferas, quando me permitem ser “eu” em relação a ”outro”. São nocivas, quando elas fecham as possibilidades para a instauração da minha singulariadade no discurso. Nesse sentido, o professor exerce um papel fundamental de, na interlecução com o aluno, dirimir os efeitos negativos dessas imagens nocivas que vão aparecendo no discurso dos alunos no seu processo de aprendizagem. Para tanto, é preciso que as imagens da norma culta dos próprios professores sejam constantemente avaliadas no seu discurso de interação com os alunos e com o conteúdo a ser ensinado em sala de aula.
Resultados de nossos trabalhos de pesquisa anteriores sobre o mesmo tema com alunos de graduação em Letras mostraram a circulação de várias imagens acerca da língua que precisavam ser repensadas, tais como: estudo da língua se resume a estudo das regras gramaticais; sintimento de inferioridade no uso da língua pelo não conhecimento da gramática; leitura e produção de textos constituem a boa mobilização das regras gramaticais; o bom texto é o que atende apenas aos registros formais de uso etc.  A partir então das interferências do professor, essas imagens, quando vindo à tona no discurso, passavam a ser trabalhadas por meio de reflexões, de novas atividades propostas, de atividades de reformulação, de trabalho colaborativo, entre outros.
Esses resultados advindos de pesquisas anteriores marcaram o meu posisionamento exotópico para o trabalho como docente-observadora das aulas de língua portuguesa oferecidas na Comunidade do Bom Parto. Era preciso então sair desse lugar para encontrar com o “outro” dos quatorze alunos, adolescentes acima de 15 anos e jovens adultos, que, em sessões de 2 horas, uma vez na semana semana, buscavam aprimorar seus conhecimentos na língua portuguesa. Essa nova turma foi aberta com 14 alunos e teve início em março de 2011. Quais eram as imagens da norma que apareceriam no discurso desses alunos?
Ao longo do trabalho de seis meses com a turma, a maior inquietação com relação às imagens da norma culta em circulação no contexto de sala de aula marcantes em nosso trabalho de observação é a própria ausência dessas imagens. Tais ausências podem ser inclusive verificadas pelos altos índices de evasão (iniciamos uma turma em fevereiro de 2011 com quinze alunos, sete dos quais desistiram. Na segunda etapa, iniciada no segundo semestre deste ano, há cinco alunos matrículados e apenas quatro participando com regularidade). A imagem que, às vezes, aparece é a que aponta para o sentimento de inferioridade dos alunos em relação ao aprendizado da norma. Essa imagem de inferioridade pode ser flagrada quando os alunos, ao serem indagados no início deste semestre sobre os temas de interesse para o trabalho com leitura e produção, não conseguiram nem mesmo listá-los.
Esse silêncio em termos da circulação de imagens na interação verbal em sala de aula de língua portuguesa na Comunidade tem nos feito elaborar outras perguntas de pesquisa. Os problemas apontados pela falta de circulação das imagens sinalizam que há problemas anteriores às dificuldades de aprendizado de língua propriamente ditas, indo, portanto, além das questões metodológicas e epistemológicas relacionadas ao ensino de línguas? Estamos diante de uma situação de desigualdade social mais extremada, que requererá de nós outras ações na docência do ensino de línguas? Quais seriam os deslocamentos discursivos necessários ao nosso trabalho de interlocução em sala de aula?
Amorim (2003), refletindo sobre as constribuições de Bakhtin e seu Círculo no contexto da educação, aponta para a necessidade de repensarmos os caminhos a serem trilhados:
Em relação aos anos noventa, (...) o contexto histórico-social mudou radicalmente. Em síntese, pode-se dizer que o avanço da política econômica do neoliberalismo no Brasil desmantelou o Estado e agravou a desigualdade entre pobres e ricos. O agravamento da miséria criou, no  interior das camadas pobres, núcleos ainda mais pobres, ainda mais marginalizados e pode-se dizer que estes passaram a constituir uma nova urgência nas preocupações dos pesquisadores contemporâneos. (...) Para as “novas fronteiras sociais” ou da chamada “exclusão social”, novas questões se colacam”. (AMORIM, 2003, p.21)
 É com essa proposta de Amorim que colocamos em discussão a problemática da atitude responsiva no ensino de língua portuguesa em comunidades de Maceió para o nosso debate neste encontro.
A segunda questão trata do movimento de apreensão da palavra do outro como atividade responsiva ativa dos alunos em relação não somente ao conteúdo apreendido, mas também em relação à construção de sentido para o próprio processo de aprendizado. Entendemos que não bastam serem os enunciados em língua estrangeira compreendidos como língua abstrata. Eles devem ser apreendidos como enunciado concreto funcionando dentro de gêneros em situações reais de comunicação. Segundo Bakhtin ([1979] 2003), “uma oração absolutamente compreensível e acabada, se é oração e não enunciado (...) não pode suscitar atitude responsiva”(BAKHTIN, [1979] 2003, p. 280).
 O projeto de extensão tem três turmas de inglês: Inglês 1 para alunos iniciantes, Inglês 2, para alunos com 30 horas de instrução e Inglês 3, turma em que focalizaremos nessa discussão. Trataremos dos eventos da segunda aula ocorrida no dia 25.08.2011, pela manhã. A turma de inglês 3 possui aproximadamente 50 horas de instrução em língua inglesa, contudo, essas horas não correspondem às mesmas horas de instrução dadas em um curso livre, porque, além da sequência ter sido tornada mais simples, a instrução que os alunos tiveram, até então, no Inglês 1 e no Inglês 2, foi dada essencialmente em português, restringindo-se, muitas vezes, às regras gramaticais da língua.
Ao iniciarmos no projeto neste semestre, instituímos uma organização do conteúdo ligando os três níveis, o que, de nosso ponto de vista, permite os alunos perceberem e apreenderem melhor o deve ser aprendido. Os dados foram retirados de duas fontes: a) nossos próprios diários reflexivos sobre nossa participação no curso; b) diários reflexivos  produzidos pelos alunos ao final de cada encontro, contendo a percepção individual sobre o conteúdo aprendido e sobre o desempenho individual naquilo que lhes pareceu fácil e difícil. 
Em nosso registro da aula do dia 25.08.2011, existem vários momentos em que a construção de sentido para o aprendizado de línguas do professor e dos alunos entra em conflito. Por exemplo, no trecho a seguir:

Treinamos o diálogo e, então, pedi a eles que o fizessem em duplas. Os alunos tiveram de copiar o diálogo no caderno. Daí não aguentei e perguntei: “por que você tem que copiar, mesmo com o diálogo na lousa? Eu não vou apagá-lo”. A aluna respondeu: “porque preciso lembrar. Na lousa eu não lembro. Precisamos olhar para o diálogo quando estamos fazendo”. Não entendo isso, parece que a memória deles está no lápis e no papel. Não adianta treinar, retreinar, deixar na lousa, eles precisam escrever e olhar o que escreveram. Ah, sim, há o problema das letras. Às vezes, durante a cópia me perguntavam que letra era essa ou aquela, apesar de terem dito a palavra em voz alta anteriormente quando montamos o diálogo na lousa. [Registro 01 – Inglês 3 – 25.08.11]

Nessa aula, como complemento à atividade de entrevistas e revisão das  informações pessoais, foi proposta uma produção de texto. Para tanto, construímos juntos, alunos e professor, na lousa uma sequência para ser completada com as informações pessoais deles mesmos e de um colega já entrevistado. Propusemos, no fim, outra atividade em que deveriam se apresentar e apresentar também um dos colegas com quem tinham feito o diálogo. Isso deveria ser feito em voz alta e sem o papel com as anotações. Os alunos foram instruídos a não memorizar o texto, apenas deveriam dizer o que lembrassem ou achassem relevante para os outros colegas da turma saberem.
Embora tenhamos procurado deixar claro que o aprendizado de língua deva valorizar a interação entre participantes de um diálogo vivo promovendo a criatividade e a “posição valorativa determinada” (BAKHTIN, [1979] 2003, p. 295), parece-nos que não conseguimos transmitir esse ponto de vista diretamente aos alunos, pois, o entendimento de língua como estrutura ou gramática sempre permeia o sentido de aprendizado, como regras a serem seguidas à risca. Nosso registro em diário demonstra o conflito que se estabelece entre a possibilidade de criação individual pela produção em voz alta e a repetição das palavras escritas na lousa e no caderno:

Aconteceu uma coisa muito marcante para mim. O texto na lousa iniciava com “Hi, guys!” (eles mesmos sugeriram começar com esse cumprimento). O primeiro aluno que se voluntariou para falar resolveu começar seu texto com “Hello! Good Morning!”. Imediatamente, uma aluna o interrompeu e disse: “Aha! Está tudo errado!” Foi uma oportunidade para discutirmos a questão do erro. É espantoso observar como esses alunos são presos ao que é certo ou errado. O que é certo é o que foi copiado da lousa e está no caderno – o que o professor disse. O que é errado é a criação individual, a possibilidade de inventar! [Registro 01 – Inglês 3 – 25.08.11]

  A atitude da aluna quando interrompe o fluxo de fala do colega para corrigi-lo demonstra um tipo de formação que considera o aprendizado de língua como nitidamente uma “abstração e não [...] como fenômeno pleno, concreto e real” (BAKHTIN, [1979] 2003, p. 273). 
Outra constatação sobre a relação entre o aprendizado da forma e aprendizado do uso pode ser visto no diário de Fábio[1], produzido ao final dessa mesma aula. Percebemos que o aluno utiliza o termo soletrar no sentido de falar, ao descrever sua atuação na produção oral do exercício proposto, assim escrevendo:

 “E minha maior dificuldade é na pronúncia, pois ao soletrar o inglês é muito diferente do português” [Fábio – 28.08.2011].

A palavra  soletrar  marca uma posição em relação ao seu interlocutor imediato: o professor. Quando solicitamos que escrevessem sobre seu aprendizado, instituímos uma demanda pelo texto escrito que remeteu os alunos à formalidade tradicional da sala de aula e, consequentemente, ao aprendizado abstrato da língua. Apesar de em sala de aula utilizarmos termos como conversar, falar, etc, é frequente na escrita dos alunos o aparecimento desses termos abstratos para a descrição de eventos concretos de utilização da língua. Observemos novamente nossos registros:

Na primeira aula, fizemos joguinhos de perguntar o nome, adivinhar nomes, trocar de nomes etc, depois ouvimos o diálogo gravado e repetimos e resolvemos o exercício proposto de ligar o nome de cada um dos dois participantes no diálogo com o sobrenome. [Registro 01 – Inglês 3 – 25.08.11]

Em outras palavras, para o aluno um texto direcionado ao professor da turma não pode conter um termo como falar, por isso, ele faz a escolha por um substituto que considera mais adequado para a modalidade escrita: utiliza soletrar, mesmo que na aula não tenha havido soletração.
Ao mesmo tempo em que os alunos parecem estar presos a esses termos abstratos, a convivência entre a experiência do aprendizado formal e essa outra experiência pela qual os alunos estão passando tem como resultado o surgimento de um fenômeno de convivência de dois contextos diversos, detectado em algumas produções. O contexto formal e abstrato e o contexto concreto de utilização da língua passam a conviver lado a lado em um processo de assimilação e acomodação sintática. A aluna Carina escreve: “(...) e cada aula gosto de aprender a dialogar em inglês, mas às vezes eu me enrolo na frase”.
A aluna Irene diz: “tenho bastante dificuldade na pronúncia. E de falar inglês corretamente”.
a experiência discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interação constante e contínua com os enunciados individuais dos outros. Em certo sentido, essa experiência pode ser caracterizada como processo de assimilação – mais ou menos criador – das palavras do outro (BAKHTIN, [1979] 2003, p. 294).

 Entendemos, assim, que a construção de sentidos alternativos para o aprendizado formal e abstrato da língua é uma atividade lenta e gradual. Segundo Bakhtin ([1979] 2003),
pode-se dizer que a palavra existe para o falante em três  aspectos: como palavra da língua neutra e não pertencente a ninguém; como palavra alheia dos outros, cheia de ecos de outros enunciados; e, por último, como a minha palavra, porque, uma vez que eu opero com ela em uma situação determinada, com uma intenção discursiva determinada, ela já está compenetrada na minha expressão (BAKHTIN, [1979] 2003, p. 294).
Em alguns casos, a assimilação e a valoração desses novos sentidos podem ser vistas na acomodação sintática de contextos. Em outros casos, o processo parece mais lento e os alunos parecem permanecer na condição de “compreensão passiva, por assim dizer, que apenas duble o [..] pensamento em voz alheia” (BAKHTIN, [1979] 2003, p. 272). 


[1] Os nomes dos alunos foram deliberadamente trocados por nomes fictícios.

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