quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Luciano Novaes Vidon

Considerações sobre escolarização e subjetividade responsável
VIDON, Luciano Novaes (UFES)
lnvidon@yahoo.com.br

1- INTRODUÇÃO
A criança que entra no sistema de educação formal, principalmente a de classe social mais baixa, é vista, percebida, logo de início, como devendo passar por um processo de higienização, uma limpeza não apenas corporal, mas comportamental, cognitiva e, por que não dizer, ideológica completa. A escola, funcionando, ao mesmo tempo, como redentora e reprodutora (SAVIANI, 1985), deveria enquadrar aquela criança nos moldes do sistema capitalista de produção material e ideológica. Todo um conjunto de normas disciplinares, desde horário até espaço físico, funcionaria no sentido de regular a própria natureza “rebelde” da criança.
Como uma argila que precisa ser trabalhada para se transformar em arte, o trabalho da escola seria moldar, dentro dos seus princípios, aquele pequeno corpo estranho que chegara às suas mãos.
A questão chave que este processo coloca é o possível choque entre este modelo pedagógico homogeneizante/higienizante, com fins claramente capitalistas, no sentido mais selvagem do termo, e a própria heterogeneidade, idiossincrasia, subjetividade dessa criança que chega à escola, um universo espaço-temporal completamente diferente do que até então ela estava acostumada, principalmente, se esta criança for de classe social desprivilegiada. Luria, com todos os ‘poréns’ de sua pesquisa, já atentava para este fato, o primeiro contato da criança com a escola, indicando que a história de cada um não poderia ser esquecida. Mas parece que esqueceram Luria...
Assim, este texto visa, a partir do olhar dialógico de M. Bakhtin (1992a; 1992b; 2010) sobre a linguagem e o discurso, sobre a sociedade, sobre a arte, olhar mais de perto a relação eu/outro, subjetividade/alteridade em educação e cultura, analisando a relação entre corpo e razão neste momento e os elos que a ligam a uma história de pensamento. Afinal, que olhar é esse que a criança lança sobre a escola, a partir do momento em que entra em contato com ela, passa a interagir com ela? E que imagem ela faz e vai fazendo a respeito do olhar da escola sobre ela mesma? É mister articular essas perguntas à mais comum: qual o olhar da escola (da academia, das instituições responsáveis pela educação, da família) sobre a criança?
Em ambos os casos pode-se pensar no que Bakhtin chama de excedente de visão do eu sobre o outro e do outro sobre o eu. Sempre no meu olhar há algo que o olhar do outro não pode ver; sempre no olhar do outro há algo que o meu não pode ver. A visão do outro sobre o eu excede a visão do eu sobre si mesmo.
Esta perspectiva desloca a concepção de razão que a escola trabalha. A razão que se depreende das colocações bakhtinianas não é uma razão do indivíduo, pura e simplesmente, mas uma razão social, construída dialogicamente, semelhante à proposta por Vigotsky (2000).
A linguagem parece ter sido um desses lugares cuidadosamente trabalhados para se “acomodar” o sujeito à homogeneização educacional e cultural. Ao ser escolarizada, ao ser educada, a criança abandonaria uma linguagem considerada pobre, confusa, suja por outra, supostamente, lógica, rica, clara.
E o corpo, seria a outra face dessa mesma moeda? Qual a relação entre corpo, linguagem e razão dentro desse sistema educacional e cultural homogeneizante/higienizante?
A hipótese que pretendo trabalhar, neste momento, se dirige à questão do tipo de razão pressuposta pela educação formal, e apoiada pela sociedade em geral. A problemática está na falta de espaço para a subjetividade do ser escolar, para sua história. Nos termos de Foucault (1996), como isto foi possível historicamente e como isto permanece atualmente?

2- ESCOLARIZAÇÃO E SUBJETIVIDADE  RESPONSÁVEL
Há, entre muitos outros, dois pensamentos, na teoria do discurso bakhtiniana, de onde gostaria de partir a fim de problematizar um pouco mais este “choque” entre homogeneização e heterogeneidade: o de que a consciência é sígnica e o de que o sujeito é constituído ética e esteticamente pela esfera sócio-histórica sob a qual está envolvido (BAKHTIN, 1992a).
O primeiro traz à tona a questão da formação simbólica da consciência individual. Nascemos no interior de uma sócio-esfera marcada historicamente, cuja realidade conhecemos, na verdade, através de representações simbólicas, entre as quais se encontram os signos verbais. Esta mediação simbólica caracteriza, marca profundamente nossa visão de mundo, uma visão que é construída por vias indiretas.
Dentro dessa perspectiva, conforme Bakhtin (id.), os fundamentos da consciência não são lógicos, mas ideológicos. Isto significa que toda consciência é constituída simbolicamente, e não representacionalmente. Assim, não são representações factuais da realidade que constituem a razão humana. Esta é, pois, constituída por representações sígnicas, semiotizadas da realidade. Ou seja, a realidade sofre uma transformação simbólica até atingir o nível da consciência. De uma certa forma, a realidade é atravessada por elementos simbólicos que a moldam dentro de um processo de deturpação da realidade, de irracionalismo. Trata-se, na verdade, de uma racionalização paralógica, que funciona por princípios que precisam ainda de maior e melhor sistematização, mas que estão em constante operação na história da humanidade.
O segundo pensamento identifica no sujeito humano uma natureza ao mesmo tempo ética e estética. O sujeito humano o tempo todo julga e é julgado, construindo assim na relação com o outro as medidas de valor que o nortearão na constituição de si mesmo e desse outro. Ao mesmo tempo, o sujeito humano é capaz de construir o simbólico, o metafórico, o metonímico, criando universos ainda não existentes, mas potencialmente presentes há tempos (a noção de autor-criador [BAKHTIN, 1992B] é, aqui, especial).
O que Bakhtin parece nos querer mostrar é que no seu dia-a-dia, o homem não pode se ver livre destes dois pólos: o ético e o estético. Ambos caminham lado a lado formando e transformando a consciência humana, a partir das imagens simbólicas extraídas da realidade vivida e experienciada dia-a-dia pelo sujeito.
Ora, viver e experienciar uma realidade é algo que só pode ser realizado, de fato, pelo próprio sujeito (BAKHTIN, 2010). Os seus olhos que vêem, o seu ouvido que escuta, as suas mãos que tocam, enfim, o seu corpo que sente o que lhe chega como realidade. É uma experiência que ele não pode legar ao outro (não há álibi!). Só ele pode vivê-la. E ele a vive representando-a simbolicamente através de signos verbais e não-verbais.
O outro, entretanto, tem um papel fundamental nesse processo de conscientização da realidade circundante pelo eu. Conforme Bakhtin, o outro dá as condições necessárias para que o eu se veja, se escute, se toque, se sinta. O outro dá um limite ao eu, um horizonte, uma perspectiva, um modo de olhar, uma visão do mundo. Sozinho, o eu não tem condições de se ver e de ver o mundo. É preciso o olhar do outro, a visão de mundo do outro.
Como esse outro (a escola, o professor, os textos, etc.) surge para o eu? Como o eu surge para o outro? Como eles se encontram? São questões fundamentais para Bakhtin (e os demais membros do Círculo) e que gostaríamos de refletir e refratar aqui. A principal justificativa desta reflexão/refração é colocar em cena a questão da subjetividade, tantas vezes distante das questões da educação. Mas não se trata da subjetividade no sentido romântico do termo, exteriorização das emoções mais íntimas do ser. A subjetividade que queremos focalizar é aquela construída a partir da coletividade, assentada sobre a base do nós, como coloca Voloshinov (1976). É esta subjetividade responsável que pode interessar de fato à educação, à arte, à cultura, à sociedade, enfim.

3- O DISCURSO OBJETIVISTA MONOLÓGICO DA ESCOLA
É quase natural associarmos o ensino formal a um processo em que objetividade, sistematicidade, reprodutibilidade são pontos centrais. Certamente, a história da educação irá mostrar os fundamentos de tal modelo didático-pedagógico. Suas raízes parecem apontar para o início da chamada era moderna, principalmente com o advento da ciência galileana e do racionalismo cartesiano. O discurso do método de Descartes é bem claro no que diz respeito à necessidade objetivista do raciocínio científico. Ao que parece, o início do sistema formal de ensino tem por princípio formar um indivíduo capaz de realizar um raciocínio nos moldes do paradigma cartesiano. Assim, o aluno deveria aprender a raciocinar abstratamente, estudar um determinado objeto à distância e ter capacidade de sistematizar as suas conclusões. O aluno idealizado, neste sentido, seria aquele mais próximo do cientista, do matemático, do químico ou do físico. O papel deste sistema formal de ensino, portanto, seria desenvolver a Razão Científica no Sujeito (aluno, cidadão, trabalhador liberal).
Essa necessidade objetivista da razão, defendida pelo ensino, chegou a um ponto que parece ter superado o próprio indivíduo, sujeito da razão, humano, particular, nascido na hora tal, do dia tal, do mês e do ano tal, filho de fulano e sicrano. Ou seja, a direção homogeneizante do processo ensino-aprendizagem em favor desta razão objetiva, sistemática, disciplinada é tão marcante que o aluno vai criando uma barreira, um muro ao redor de si, para que, nesta esfera, ele possa guardar sua subjetividade, sistematicamente apagada pela escola.
Um clássico exemplo disso são as chamadas “técnicas de redação”, principalmente em relação à produção de textos dissertativos. Nesse sentido, há toda uma pedagogia da dessubjetivação enunciativo-discursiva dos textos e de seus autores (ver a esse respeito, VIDON, 2009).
Como e por que a escola vai apagando o sujeito?
A escola vai se colocando para o eu do aluno como um outro que quer impor sua voz, seu olhar, seus julgamentos de valor, seu corpo e sua linguagem. Ela se coloca como a autoridade e não dialoga com o aluno, não deixa que ele olhe com seus próprios olhos, não o permite falar com suas próprias palavras (tornar-se autor-criador, por exemplo). Ele sempre tem que falar, ou melhor, repetir as palavras desse outro que se impõe para ele como autoridade inexorável. Nos termos de Bakhtin, adaptado a esta discussão, a escola promove um monólogo, muitas vezes chato e irritante. O indivíduo vai se sentindo menor, menosprezado, apagado. A escola não consegue fazer com que ele atinja aquela razão ideal. Mas o aluno pensa que a culpa é dele, que não sabe pensar direito, tem preguiça de ler, não sabe fazer conta, não sabe nada de português, porque não consegue fazer análise sintática, uma boa redação. Alguns poucos parecem conseguir dialogar com a escola. Porém, a explicação parece ser outra: eles passaram por diversas experiências fora da escola que os levaram a conseguir raciocinar nos moldes da escola, a ter o hábito de leitura, a pensar que sabem gramática, redação etc.

4- MENTE INSANA, CORPO INSANO
O corpo parece ter se tornado hoje um lugar na escola em que mais do que nunca se buscam explicações para falhas nos processos ensino-aprendizagem. Mas estas falhas são sempre buscadas nas crianças, isto é, são as crianças que têm problemas de aprendizagem, dislexia, disgrafia, etc. Na avaliação escolar, quando a “mente” da criança não atinge os resultados previstos pelo sistema, a causa do problema deve ser buscada no corpo dela (em sua estrutura orgânica ou cognitiva). A criança, então, é encaminhada para o fonoaudiólogo, para o psicólogo, para o oftalmologista, para o neurologista, ou para qualquer outro especialista em algum órgão do corpo que possa ser a origem dos problemas de aprendizagem que ela está apresentando.
Até mesmo os órgãos governamentais internacionais de educação, como UNICEF, apontam como necessidade fundamental olhar o organismo biofísico que se encontra na escola. As recomendações vão desde alimentação, vestuário, material didático, até atendimento clínico freqüente e especializado. Neste sentido, todas as energias parecem ser gastas no sentido de colocar aquele corpo físico em condições ideais de aprendizagem, principalmente porque a grande maioria das teorias psicopedagógicas partem da concepção biológica de indivíduo. A teoria psicogenética piagetiana, por exemplo, sustenta inúmeras práticas pedagógicas que já atingiram status de essenciais, necessárias, adquirindo valor de imanência na área educacional. Nesta teoria, fica clara a idéia de que o cognitivo depende necessariamente do biológico, ou, em outras palavras, a aprendizagem é baseada no desenvolvimento biológico. Isto significa que, por exemplo, se, numa classe, a maioria das crianças lêem, ainda que com certa dificuldade, aquelas que não estão lendo devem ser encaminhadas para atendimento clínico, porque devem estar apresentando algum problema patológico em seu desenvolvimento físico que as impedem de aprender este ou aquele conteúdo.
Como se chegou a este quadro? O que o sustenta e o torna tão natural, tão aceitável (e enunciável, como diria Foucault, 1986)?
Tentar responder a estas questões parece ser uma responsabilidade nossa, como educadores. Esta razão encontra sua principal justificativa no fato de este procedimento patologizante do desenvolvimento mental de crianças em idade escolar também fazer parte desse sistema educacional e cultural maior que visa moldar corpos e mentes. Por que é assim? O que faz com que o sistema formal de ensino busque cada vez mais explicações para suas falhas no meio clínico, interpretando os problemas de aprendizagem como estritamente patológicos? Ou seja, por que o corpo individual é visto como lugar dos problemas de aprendizagem? Um corpo, dessocializado, desestoricizado, dessubjetivado...

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, M. [VOLOSHINOV] Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.
______ Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
______ Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro&João Editores, 2010.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986.
SAVIANI, D. Escola e democracia. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1985.
VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
VIDON, L. N. “Subjetividade e dessubjetivação em textos dissertativos-argumentativos” IN: LINS, M. P. P. & VIDON, L. N. Da análise descritiva aos estudos discursivos da linguagem: a lingüística no Espírito Santo. Vitória-ES: PPGEL/UFES, 2009.
VOLOSHÍNOV [1927] Discurso na vida e discurso na arte (tradução de Cristóvão Tezzo, para uso didático). “Discours in life and discours in art (concerning sociological poetics” In: Freudianism – A marxist critic, New York, Academic Press, 1976. 

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