quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Renata Pucci

O espaço dialógico da sala de aula: observações do jogo interlocutivo entre alunos e professora de língua inglesa
Renata Pucci
UNIMEP – Universidade Metodista de Piracicaba

Dentro de meu campo de trabalho e estudos venho observando a prática de professores de língua inglesa[1], em específico em escola de idiomas, estes que trabalham com uma abordagem específica de ensino de língua estrangeira (neste caso, a abordagem comunicativa), cronogramas e roteiros pré-estabelecidos. Um dos objetivos de minha investigação na sala de aula de língua inglesa, o qual é tema deste texto, é a observação das oportunidades de fala dos alunos no jogo interlocutivo de sala de aula, no qual os professores, comumente, conduzem os turnos de fala e (de)limitam, portanto, as interações discursivas.
No intento de compreender o processo da comunicação discursiva, volto-me para M. Bakhtin (2006a), que apresenta-o como um processo complexo e amplamente ativo, não podendo ser equivocadamente limitado a esquemas, chamados por ele de verdadeiras “ficções”, onde encontramos de um lado o falante – ativo - e do outro o ouvinte - receptor passivo do discurso.
O ouvinte, nos diz Bakhtin, ocupa uma posição ativa responsiva na comunicação, não estando relegado ao lugar inerte de mero receptor, pelo contrário, este percebe, compreende o discurso e já imediatamente dele “discorda ou concorda (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.” (2006a, p. 271).
O próprio falante, que usa de enunciados que antecederam aos seus, próprios e alheios, nos quais se baseia, com eles dialoga e os supõe conhecidos de seu ouvinte, esperando desde o princípio a compreensão ativa responsiva de seu interlocutor, espera “uma resposta, uma concordância, uma participação, uma objeção, uma execução, etc.” (2006a, p. 274). Todo enunciado é endereçado a alguém, prevê um destinatário[2] (presente ou presumido, no caso das obras literárias) e se realiza ansiando por uma resposta. Na arquitetônica dialógica de Bakhtin, todo e cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados.
Em um diálogo[3] real, onde há alternância de enunciações, chamadas por Bakhtin de réplicas, que são interligadas, compreendem-se as relações de pergunta-resposta, afirmação- concordância, proposta–aceitação, entre outras relações que só são possíveis nas enunciações plenas dentro do processo da comunicação discursiva, processo este que compreende as enunciações dos diferentes falantes e que pressupõem outros enunciados de outros falantes (ausentes, palavras alheias, ecos de outros enunciados).
Através da ótica dialógica dos estudos no âmbito da linguagem de Bakhtin é que procuro fundar-me para desenvolver uma análise enunciativo-discursiva das interlocuções em uma sala de aula de língua inglesa.[4]

Das oportunidades de fala
Apresento para a análise um episódio onde a professora durante a aula, ainda que conduza os turnos de fala, viabiliza oportunidades para que as interações discursivas entre ela e os alunos ocorram. Também observo que na sala de aula, além da voz da professora, outras vozes que extrapolam este âmbito vão ajudando na construção dos discursos. A palavra enunciada em uma situação concreta está repleta de palavras dos outros, apropriadas no percurso da história social dos sujeitos.
A professora está conversando sobre trânsito com os alunos.
Professora: We can talk about cars and bikes, because it’s the same risk. When you’re riding a bike it’s worse, because people don’t respect you. They don’t care. So, what do you think about traffic here in this city? - Nós podemos falar sobre carros e bicicletas, porque é o mesmo risco. Quando você está andando de bicicleta é pior, porque as pessoas não te respeitam. Elas não ligam. Então, o que vocês acham do trânsito aqui nesta cidade?
Marina: I think the most of people are not polite. [sic]Eu acho que a maioria das pessoas não é educada.
(...)
Professora: Do you ride your bike every day to go to college? - Você vai de bicicleta todos os dias para a faculdade?
Emília: Yes, every day.- Sim, todos os dias.
Professora: And, what do you think? - E o que você acha?
Emília: The cars don’t respect bikes. [sic] - Os carros não respeitam as bicicletas.
Professora: Cars don’t respect bikes. - Os carros não respeitam as bicicletas.

Observamos que a palavra é da professora, que com suas perguntas, conduz o discurso na aula. As posições enunciativas que são permitidas aos alunos ocupar se configuraram, ou em espaço da tomada da palavra enquanto diálogo - como evento da interação social, na qual as palavras se encontram, se chocam, confrontam-se, apresentando-se cada uma delas como uma arena em miniatura -, ou apenas enquanto lugar de coadjuvante do discurso docente, a partir do qual os alunos concordam ou discordam (Yes or No) e colaboram com exemplos.
Neste episódio, o modo como a professora articula seu discurso tem êxito em estabelecer um diálogo, ainda que curto, entre ela e os alunos.
Retomando Bakhtin (1990), o falante orienta seu discurso para o ouvinte, para seu círculo particular, seu mundo particular, ao que introduz novos elementos em seu próprio discurso, promovendo a interação de diversos contextos, horizontes, pontos de vista e de diversas falas sociais. “O locutor penetra no horizonte alheio de seu ouvinte, constrói a sua enunciação no território de outrem, sobre o fundo aperceptível de seu ouvinte” (Bakhtin 1990, p. 91). No ouvinte, por sua vez, se dá a apreensão apreciativa do discurso do outro. O ouvinte “é um ser cheio de palavras interiores” e o discurso interior de cada um mediatiza a compreensão da palavra do outro e, por este caminho, fundem-se as palavras do ouvinte com as palavras do outro - o discurso apreendido do exterior (Bakhtin, 2006b, p. 151). 
A professora, no episódio em questão, traz a realidade dos alunos para o tema da aula (“We can talk about cars and bikes[5], because it’s the same risk. - Nós podemos falar sobre carros e bicicletas, porque é o mesmo risco.”), e também traz a sua opinião sobre o assunto, ilustra um contexto, antes de pedir que os alunos o façam com uma pergunta que, como parte deste enunciado, solicita uma elaboração nas respostas dos alunos:
 When you’re riding a bike it’s worse, because people don’t respect you. They don’t care. So, what do you think about traffic here in this city? -  Quando você está andando de bicicleta é pior, porque as pessoas não te respeitam. Elas não ligam. Então, o que vocês acham do trânsito aqui nesta cidade?

Nas respostas dos alunos, que se seguem ao enunciado acima, ecoam a voz da professora e nas vozes dos alunos e da professora ecoam vozes do âmbito social mais amplo, de outros interlocutores aos quais seus dizeres respondem, deixando transparecer em seu discurso um discurso socialmente construído, apreendido, assimilado, reeditado e proferido como seu.

Marina: I think the most of people are not polite. [sic]Eu acho que a maioria das pessoas não é educada.
(...)
Emília: The cars don’t respect bikes. [sic] - Os carros não respeitam as bicicletas.

O que falam, alunos e professora, remete a um discurso socialmente construído e, ouso dizer, também a um fato socialmente experimentado por eles: os carros não respeitam as bicicletas.
Uma visão de mundo, uma corrente, um ponto de vista, uma opinião sempre tem expressão verbalizada. Tudo isso é discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal), e este não pode deixar de refletir-se no enunciado. O enunciado está voltado não só para seu objeto, mas também para os discursos dos outros sobre ele. (Bakhtin, 2006b, p. 300)

Bakhtin (2006a) afirma que a experiência discursiva de cada um se dá em uma interação constante com os discursos de outrem. Esclarece-nos que “em certo sentido, essa experiência pode ser caracterizada como processo de assimilação – mais ou menos criador – das palavras do outro [...] que trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos e re-acentuamos” (Bakhtin, 2006a, 294/295). A assimilação de vozes sociais não é, portanto, nunca um ato de simples reprodução de enunciados. Trata-se de um processo vivo e dinâmico de apreensão, elaboração, construção e transformação de sentidos que o sujeito exterioriza em sua enunciação, singular e, ao mesmo tempo, plena das palavras dos outros.
Como observado na fala de Emília, a aluna repete a expressão “don’t respect – não respeitam”, usadas anteriormente pela professora, contextualizando-a e servindo-se dela para a concretização de seu objetivo comunicativo. No ensino de língua estrangeira, dentro da sala de aula, este é um dos caminhos pelo qual que se dá a apropriação da palavra do outro e a própria aquisição da língua. É o que Bakhtin já constatara ao explanar sobre a língua em contexto, em seu emprego vivo, e sobre o processo de tornar a palavra própria, submetê-la às próprias intenções,
quando o falante a povoa com sua intenção, com seu acento, quando a domina através do discurso, torna-a familiar, com sua orientação semântica e expressiva. Até o momento em que foi apropriado, o discurso não se encontra em uma língua neutra e impessoal (pois não é do dicionário que ele é tomado pelo falante!), ele está nos lábios de outrem, nos contextos de outrem e a serviço de outrem: e é lá que é preciso que ele seja isolado e feito próprio. (Bakhtin, 1990, p. 100)

A partir do que diz a professora, os alunos tomam a palavra, usam palavras dela para comporem seus discursos. Mas não se trata de mera repetição, é elaboração, ocorre o evento do diálogo construído entre os participantes, do processo de negociação de sentidos.

Algumas considerações
O contexto das presentes interlocuções, que abarca assuntos de relativa familiaridade e interesse dos alunos e reflete os contextos culturais e sociais pelos quais circulam e nos quais se constituem, e também a maneira como a professora elabora seu discurso (fora das perguntas meramente didáticas, diálogos pré-moldados e repetições, tão comuns na sala de aula de língua estrangeira), propiciam a construção de enunciações significativas, em língua inglesa, pelos alunos. Estes têm algo a dizer, não apenas a responder (como parte da tarefa de seu papel de aluno).
Bakhtin (2006b, p. 96) afirma que “somente reagimos àquelas (palavras) que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida”. Não há, portanto, enunciados neutros. “Todo enunciado emerge sempre e necessariamente num contexto cultural saturado de significados e valores e é sempre um ato responsivo, isto é, uma tomada de posição neste contexto” (Faraco, 2009, p. 24).
 Não é na prática exaustiva das formas da língua que o indivíduo será levado a comunicar-se em inglês (Quast, 2009, p. 23), mas dentro de situações que, respectivamente, atendam e despertem sua necessidade e desejo de comunicação. A língua, assim, deixa o status de instrumento, de meio para atingir fins, para ser parte de um processo dialógico de movimentos interlocutivos construído entre os sujeitos.

Bibliografia
BAKHTIN, Mikhail M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: HUCITEC , 1990.
______. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto e Cristovão Tezza da edição americana Toward a philosophy of the act. Austin: University of Texas Press, 1993. (tradução destinada exclusivamente para uso didático e acadêmico).
______. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006a.
______. Marxismo e filosofia da linguagem. 12 ed. São Paulo: Hucitec, 2006b.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as idéias lingüísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
QUAST, Karin.  Discurso interior e o processo de ensino-aprendizagem da língua estrangeira. Tese (Doutorado em Educação) - FE/UNICAMP, Campinas, 2009.


[1] As interações discursivas estabelecidas entre professora e alunos em sala de aula de língua estrangeira configuraram os dados de minha pesquisa de Mestrado, realizado no PPGE da UNIMEP, concluído em Fevereiro de 2011.
[2] Bakhtin entende que todo enunciado se dirige a um interlocutor, o qual poderá variar “se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido, etc.)” (2006b, p. 114), porém não há interlocutor abstrato. Mesmo o mundo interior, as reflexões de cada indivíduo, tem um auditório social próprio, bem estabelecido, com fronteiras definidas dentro de uma classe e de uma época.
[3] Bakhtin (2006a, p. 275) considera o diálogo face a face, por sua precisão e simplicidade, a forma clássica da comunicação discursiva, onde é possível observar de maneira clara a alternância das enunciações dos sujeitos do discurso. A obra de Bakhtin, todavia, aponta para uma concepção ampla de diálogo, todo enunciado é ligado aos elos que o precedem e também aos que lhe sucedem na cadeia da comunicação verbal, nos diz ele (2006a, p. 320). Segundo o princípio dialógico de Bakhtin (2006b, p. 98): Toda enunciação monológica, inclusive uma inscrição num monumento, constitui um elemento inalienável da comunicação verbal. Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal. Não passa de um elo na cadeia dos atos de fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as.
[4] O trecho transcrito é parte de minha dissertação de mestrado: O PAPEL DO PROFESSOR NA TOMADA DA PALAVRA PELO ALUNO NA LÍNGUA INGLESA: UMA ANÁLISE ENUNCIATIVA DAS INTERLOCUÇÕES EM SALA DE AULA. UNIMEP, 2011. Para a construção dos dados desta pesquisa foram realizadas filmagens das aulas de uma turma do estágio intermediário de inglês ao longo de aproximadamente dois meses (abril e maio 2010) em uma escola de idiomas localizada no interior de São Paulo.

[5] Observamos pela transcrição desta aula que apenas um aluno dirige, os outros, deslocam-se em sua maioria de bicicleta. A professora, podemos inferir, aproveita-se desta informação na construção deste enunciado.

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