quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Rita Marisa Ribes Pereira

Pesquisa com crianças: Pensar, conviver e escrever como atos responsivos
Rita Marisa Ribes Pereira[1]
PROPEd - UERJ

Este texto tem por objetivo apresentar uma reflexão sobre a singularidade da pesquisa com crianças tendo por referência a experiência acumulada no diálogo entre os projetos institucionais e as monografias, dissertações e teses produzidas no Grupo de Pesquisa Infância e Cultura Contemporânea. Nosso tema central de pesquisa tem sido a infância e sua relação com a cultura contemporânea, com destaque para os atravessamentos das diferentes formas de mídias nessa relação. É desse contexto plural de estudos que trazemos as reflexões que se seguem, produzidas coletivamente ao longo de nossa trajetória de grupo[2]. O objetivo principal deste texto é demarcar academicamente o ponto a partir do qual formulamos nossas questões e metodologias de pesquisa.
A sustentação teórico-metodológica dessa trajetória vem sendo produzida em diálogo com a filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin (1976, 1981, 1985, 1997, 2003, 2010). O que buscamos nesse autor é uma perspectiva de ver o mundo e de pensar eticamente a produção do conhecimento que entendemos ser pertinente à postura de pesquisa que desejamos construir, sobretudo na articulação que o autor faz entre ética, estética e conhecimento. Entendemos a atividade de pesquisa como um acontecimento, no sentido bakhtiniano, como um processo dinâmico de interlocução e produção de sentidos que implica um modo de ser no mundo. O acontecimento é da ordem do Ser. É criação humana, realidade socialmente construída, cronotopicamente contextualizada, única e irrepetível. É terreno de imprevisibilidade (e não de acasos), de enunciação, de implicação e de escolhas. Isto só se torna possível pela não-indiferença dos sujeitos entre si e destes em relação ao conhecimento e à linguagem que produzem. Não se trata de um sujeito abstrato face a uma realidade que lhe é dada, mas de um sujeito posicionado e responsivo. Nessa linha de pensamento, a pesquisa é a instauração de um acontecimento que pressupõe uma ativa relação entre os sujeitos que se põem em diálogo, o tema sobre o qual eles dialogam e o contexto no qual esse diálogo se dá. Alterando-se um desses elementos – os interlocutores, o tema ou o contexto – altera-se o todo da interlocução e o próprio sentido do pesquisar.
É nessa arena de interlocução que situamos a singularidade da pesquisa com crianças, uma vez que dialogar com as crianças e suas produções, ou assumir a infância como temática de estudo, funda uma realidade em que a experiência da pesquisa é necessariamente diferente daquela que poderia ser vivida no diálogo com outros interlocutores, temas ou contextos. Do mesmo modo, entendemos que os temas estudados – infância, cultura contemporânea e mídia – propiciam debates diferentes daqueles provocados por outras temáticas, como o fato de pensá-los relacionados à experiência infantil, faz com que o discurso produzido ganhe especificidade.
Assim, o que aqui nomeamos como pesquisa com crianças implica a construção de uma postura de pesquisa que coloca em discussão o lugar social ocupado por pesquisadores e crianças na produção socializada de conhecimento e de linguagem. Mais do que uma opção por ter crianças como interlocutoras no trabalho de campo, implica pensar os lugares de alteridade experimentados por adultos/pesquisadores e crianças ao longo de todo o processo de pesquisa, um longo e complexo processo que envolve a delimitação de um tema, a formulação de questões norteadoras, as filiações teóricas, a delimitação de um campo, a elaboração de estratégias metodológicas, as opções de análise, e, ainda, um exercício permanente de pensar e escrever, que se estende da formulação das questões iniciais à circulação dos textos que resultam da pesquisa. Ou seja, ainda que a interlocução com as crianças se torne mais facilmente visível no trabalho de campo, compreendemos que essa interlocução se faz presente ao longo de todo o processo de pesquisa, antes e depois do trabalho de campo, e mesmo na pesquisa de caráter eminentemente teórico que abdique de um trabalho dessa natureza.
É certo que a opção pela realização de um trabalho de campo que coloque face a face pesquisador e crianças cria um tipo de realidade diferente daquela experimentada pelo pesquisador quando este se debruça sobre estudos teóricos ou sobre produções infantis que dispensem a presença das crianças em sua interlocução. O que estamos a afirmar é que toda pesquisa dedicada aos estudos da infância, de forma mais ou menos imediata, em última instância, estabelece um diálogo com as crianças concretas. De que maneiras esse diálogo se efetiva? Buscaremos enfrentar teoricamente essa questão a partir de três aspectos que entendemos serem constitutivos da atividade da pesquisa: o pensar, o conviver e o escrever. Vale frisar que entendemos esses aspectos como complementares e até mesmo indissociáveis, não atribuindo a eles qualquer relação de hierarquia ou de linearidade no acontecimento da pesquisa.

Pensar
            O que é pensar? O que é pensar a infância? O que se coloca em jogo quando escolhemos pensar a infância e não outra coisa? Em que medida pensar a infância é também tecer uma interlocução com as crianças concretas? Bakhtin desenvolve a tese de que o pensar pode ser, ele mesmo, um ato ético, no tênue diálogo que estabelecem entre si vida e ciência, onde a vida é o terreno das singularidades, e a teoria científica o terreno onde se torna possível a universalidade das questões e da crítica.
            Qual a ética de um pensamento? Em que condições um pensamento teórico pode ser ético? Buscando responder essas questões, Bakhtin explora a polissemia palavra verdade que em russo contém a ambivalência de ser istina (a verdade de uma teoria que pode ser conferida pela coerência interna) e pravda (o que essa mesma teoria significa de verdade para o sujeito que a pensa). Essa distinção conduz a entender que o que torna ético o pensar, é a singularidade com que o sujeito produz uma teoria, se filia a ela ou a ela se contrapõe. A ética, não está na teoria em si, mas no ato de pensá-la, de torná-la singular, de assiná-la. Assinar uma teoria significa tornar-se singularmente seu autor.
             Que teorias estão em cena quando pensamos a infância? Qual o lugar da teoria na pesquisa que fazemos? Que verdades estamos a assinar? É no lugar singular em são gestadas as questões de pesquisa que se instaura o ato de pensar: nele são lapidadas a questão norteadora, as opções teóricas e metodológicas. O ato de pensar não é “uma” parte da pesquisa, é constituinte de todo seu processo. O pesquisador é “convocado” a esse pensar e nessa “convocação” não se separam os aspectos puramente teóricos ou as estratégias do agir; ao contrário, o agir é amparado nas concepções teóricas tanto quando a teoria se transforma em ato na medida em que se torna válida num contexto singular. 
É nesse contexto que compreendemos a indissociabilidade entre os conceitos de infância e crianças, entendendo as crianças como categoria social constituída por sujeitos concretos e a infância como a experiência que lhes é própria. Compreendemos que estes conceitos, na delimitação que aqui fazemos, quando tratados separadamente nos campos da teoria e da empiria, conduzem para a produção de um conhecimento parcial, que não necessariamente responde à complexidade da realidade social. Na linha teórica que aqui assumimos, trabalhar imbricadamente esses conceitos pressupõe assumir a responsabilidade de saber que nas mais simples atitudes tomadas em diálogo com as crianças (seja no pensar, seja no campo, seja na escrita da pesquisa), o pesquisador implica sua visão teórica de infância; do mesmo modo que sua teoria, mais do que constatar com distanciamento algum aspecto da realidade infantil, funda realidades que afetam direta ou indiretamente as crianças.

Conviver
            A relação de alteridade entre adultos e crianças é constitutiva da vida social e se transforma conforme contextos em que é por eles experimentada: na família, na escola, na cidade, na esfera jurídica, na ciência etc. A opção pela realização de um trabalho de campo, onde, além de todo o estudo teórico que caracteriza a pesquisa científica, coloca face a face pesquisador e crianças, funda um tipo específico de acontecimento e uma relação de alteridade singular. Se, numa perspectiva eminentemente teórica de pesquisa a relação que se estabelece com as crianças concretas é mediada abstratamente pela ciência, a opção por uma pesquisa que desenvolva um trabalho de campo cria uma realidade presencial de alteridade no interior do próprio processo de pesquisa. Como se dá o encontro entre pesquisador e criança? Que realidade se cria quando seus olhos se cruzam? Como entender e se fazer entender pelas crianças? Que veracidade credito às suas respostas? Como compartilho do seu saber? No conviver se desnudam as concepçãões de conhecimento, pesquisa, alteridade e ética que nos acompanham.

Escrever
A escrita não é um produto final da pesquisa, mas um processo, um lugar de pensamento, um terreno alteritário e exotópico por natureza. O texto é o ambiente em que a pesquisa se deixa conhecer. É na escrita que as idéias pensadas podem ser colocadas em debate, seja por outras pessoas, seja pelo próprio pesquisador que antes lidava com ela apenas internamente. Desse modo, a escrita do texto de pesquisa coloca em cena variadas experiências de alteridade, com possíveis interlocutores/leitores, e também do pesquisador consigo mesmo. Na escrita o pesquisador pode ver-se de fora, surpreender-se com seu próprio pensamento, estranhar-se a si mesmo, descobrir-se. Por isso mesmo, a escrita não é nunca o trabalho de fechamento de uma pesquisa, mas o território onde suas questões ganham vida. É no rascunhar, no ler, no rever, no apagar, no refazer, no ressignificar da escrita que a pesquisa se estrutura e as relações de alteridade se formalizam.
Qual o lugar das crianças no texto de pesquisa? De que maneiras o conviver se transforma em escrever? Que singularidade guarda um texto no contexto da pesquisa com crianças? Aqui novamente coloca-se uma reflexão contundente sobre ética e verdade: sendo o texto escrito pelo pesquisador, qual o lugar das crianças no texto que escreve? Que vozes aparecem? Que relações de alteridade e de autoridade elas revelam?
            A escritura do texto de pesquisa é um modo de assinar um pensamento, fazendo dele não apenas uma teoria válida, mas uma verdade (pravda) para aquele que o produz. A assinatura é um posicionamento para o qual não há álibi – nem mesmo as condições de produção ditadas pelas avaliações institucionais. A assinatura é um compromisso, um ato responsivo e também a demarcação de um lugar alteridade: é a partir do que assinamos que se institui a possibilidade da crítica, dos confrontos ideológicos, da polifonia, da discursividade.
            Compreender a pesquisa com crianças no entrelugar em que se tocam a ética, a estética e a epistemologia, pressupõe compreender que o escrever, o conviver e o pensar são atos responsivos.

Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail.  (Volochinov) . “Discurso na vida e discurso na arte”. In: Freudianism: a marxist critique. New York, Academic Press, 1976 (tradução de Cristóvão Tezza, para uso didático).
________________. (Volochinov). Marxixmo e filosofia da linguagem. São Paulo. Huicitec, 1981. 
________________. “Arte y responsabilidad” In: Estética de la criacion verbal. México, Siglo XX, 1985.
________________. Hacia uma filosofia Del acto ético. De los borradores y otros escritos. Porto Rico: Anthropos, 1997.
________________. Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 2003.
________________. Para uma filosofia do ato. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.


[1] Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas e doutora em Educação pela PUC-Rio. Professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Infância e Cultura Contemporânea – PROPEd-UERJ.
[2] A produção deste texto teve por base um exercício coletivo de reflexão e sistematização do modo como compreendemos a pesquisa com crianças. Nesse sentido, são também seus co-autores: Fernanda Mendes Gonçalves, Joana Loureiro Freire, João Marcelo Lanzilloti, Ivana de Souza Soares, Nélia Mara Rezende Macedo, Núbia de Oliveira Santos, Renata Lúcia Baptista Flores, Regina Maria Neiva Mesquita e Vânia Lúcia Monteiro de Souza.

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