quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Lídia Maria Ferreira de Oliveira

O lugar do outro e a produção do texto escrito: o diálogo como um princípio
Lídia Maria Ferreira de Oliveira
Doutoranda do PósEdu-UFF

 “tudo o que me diz respeito, a começar pelo meu nome, chega do mundo exterior à minha consciência pela boca dos outros (da minha mãe, etc.) com a sua entonação, em sua tonalidade valorativo-emocional. [...] a consciência do homem desperta envolvida pela consciência do outro” (BAKHTIN)

De maneira geral, as discussões em torno da necessidade de compreender a produção do texto escrito, especialmente no contexto escolar, têm se mostrado cada vez mais importantes para a contribuição do desenvolvimento de um trabalho pedagógico que possibilite aos estudantes não só o aprendizado de uma determinada variedade lingüística, mas, principalmente, o aprofundamento daquilo que já sabem na condição de usuários de uma língua que não só atende às suas necessidades de comunicação, mas que, principalmente, os constitui.
            Historicamente, aprender a língua na escola tem sido aprender uma variedade lingüística que entra em franca contradição com as variedades da maioria da população, o que gera conflitos e tensões, inicialmente, intrínsecos da própria atividade da linguagem, revelando o trabalho do sujeito com a linguagem. Acontece que tais conflitos e tensões, materializados na forma de usos diferentes daquele da variedade tida como padrão, são concebidos como erro.
            A partir daí, o que se observa são aulas e exercícios voltados para a correção; dentre os conteúdos considerados como capazes de assegurar o bom uso da língua está a aprendizagem da nomenclatura e classificação gramatical e a própria descrição gramatical como um fim em si mesma, cujo objetivo é a julgamento do conhecimento metalingüístico. Tais procedimentos se ancoram em uma concepção de sujeito como um ser passivo e de linguagem como um objeto autônomo, concluído e a-histórico, sem espaço para a ação de um sujeito.
Uma concepção de sujeito como um ser que opera com e sobre a linguagem e que por ela é constituído ao mesmo tempo em que a constitui se opõe a tais procedimentos, uma vez que é inerente a ela que aprender é produzir conhecimento, assim, ao mesmo tempo em que os estudantes aprendem sobre sua própria língua – sim, há muito que se aprender sobre aquilo que nos constitui e que, por isso, é tão natural como o ar que respiramos! – estão produzindo conhecimentos bastante específicos sobre ela (GOULART, 2006), evidenciados, inclusive, quando constroem hipóteses que destoam da prescrição gramatical.
A questão que se coloca para o aprendizado da modalidade escrita da língua é justamente a pergunta sobre o que vem sendo considerado objeto de ensino da escrita, com vistas a ampliar as possibilidades de interação e constituição dos sujeitos (GERALDI, 1995).
Tomando como orientação os postulados da teoria da enunciação bakhtiniana, ressaltando o princípio dialógico dessa teoria como marco para as reflexões sobre o ensino da produção do texto escrito na escola, devemos levar em conta duas questões que entendemos ser de suma importância: por ser a escola uma esfera altamente estruturada ideologicamente, os discursos que nascem no seu interior ou que são por ela veiculados saem na frente na disputa pela formação da consciência do indivíduo; a outra questão diz respeito ao fato de que “o acesso a determinados discursos está articulado aos modos de relacionar-se com os próprios discursos” (BRITTO, 2003).
Partindo do que já dissemos anteriormente sobre o fato de que quando o sujeito está aprendendo sobre a língua, ele está produzindo conhecimento sobre este produto cultural, compreendemos que o acesso aos discursos veiculados pela escrita está vinculado aos modos como se dá o relacionamento do sujeito com os discursos organizados a partir dessa modalidade, e em se tratando da escola, aos modos como se concebe o ensino da escrita nessa esfera. Isso porque, como nos ensina Bakhtin, não são os objetos linguísticos que formam nossa consciência, mas os signos que, como tais, estão sujeitos aos critérios de avaliação ideológica (1995). Por isso, aprender a língua na escola é ter possibilidades de compreender e avaliar como os discursos que circulam na escola, em todas as disciplinas, se organizam a partir daquilo que os discursos têm de fundamente, qual seja, a relação entre os sujeitos que constituem esses discursos, sejam os imediatos ou mediatos.
Assim, o foco da produção do conhecimento sobre a língua deixa de ser o texto, entendido apenas como superfície, e desloca-se para a atividade discursiva, entendida como atividade que coloca em cena sujeitos interlocutores operando com discursos, englobando, portanto, aspectos lingüísticos, temáticos, estilísticos, etc. E que significado pode ter tal descolamento para o ensino?
Pode significar a problematização do caráter desse ensino e dos dos modos de se ensinar na escola, sempre levando em conta que a escola é uma esfera ideológica importante. Sobre o fato de a escola ser uma importante esfera ideológica e o significado disso para a formação da consciência do sujeito, Bakhtin diz o seguinte:
Aquilo que foi dito dos sujeitos falantes e das palavras de outrem no cotidiano não sai dos limites superficiais da palavra, seu peso em uma situação dada, por assim dizer; camadas semânticas e expressivas profundas da palavra não entram em jogo.
É diferente o sentido que o tema do falante e de seu discurso, no uso ideológico de nossa consciência, adquire no processo de sua comunhão com o mundo ideológico. A evolução ideológica do homem - neste contexto - é um processo de escolha e de assimilação das palavras de outrem.
O ensino de disciplinas verbais conhece duas modalidades básicas escolares da transmissão que assimila o de outrem (do texto, das regras, dos exemplos): "de cor" e "com suas próprias palavras". Esta última modalidade coloca em pequena escala um problema puramente estilístico para a prosa literária: relatar um texto com nossas próprias palavras é, até um certo ponto, fazer um relato bivocal das palavras de outrem; pois as "nossas palavras" não devem dissolver completamente a originalidade das palavras alheias, o relato com nossas próprias palavras deve trazer um caráter misto, reproduzir nos lugares necessários o estilo e as expressões do texto transmitido. Esta segunda modalidade de transmissão escolar da palavra de outrem “com nossas próprias palavras" inclui toda uma série de variantes da transmissão que assimila a palavra de outrem em relação ao caráter do texto assimilado e dos objetivos pedagógicos de sua compreensão e apreciação.
O objetivo da assimilação da palavra de outrem adquire um sentido ainda mais profundo e mais importante no processo de formação ideológica do homem, no sentido exato do termo. Aqui, a palavra de outrem se apresenta não mais na qualidade de informações, indicações, regras, modelos, etc., - ela procura definir as próprias bases de nossa atitude ideológica em relação ao mundo e de nosso comportamento, ela surge aqui como a palavra autoritária e como a palavra interiormente persuasiva. (2002) (Grifos nossos)
           
A palavra interiormente persuasiva é, por princípio, dialógica, se constitui no encontro entre duas consciências, é metade nossa, metade de outrem. Não é concluída nem fechada, ao contrário, “continua a se desenvolver livremente, adaptando-se ao novo material, às novas circunstâncias, a se esclarecer mutuamente, com os novos contextos”, portanto, é sensível ao enquadramento, ou seja, relaciona-se com nossa palavra autônoma, organizando, do interior, as massas autônomas de nossas palavras, ingressando em um relacionamento tenso e num conflito com outras palavras interiormente persuasivas Diferente da palavra autoritária, cuja força centrípeta tem pretensões unívocas, a palavra interiormente persuasiva gera um movimento centrífugo a partir mesmo de sua força centrípeta, porque sua estrutura semântica permanece aberta, revelando novas possibilidades de sentido de acordo com os novos contextos dialogizados (BAKHTIN, 2010, p. 146).
            Se a palavra autoritária é encontrada de antemão, organicamente ligada ao passado hierárquico, e exige reconhecimento e assimilação, a palavra interiormente persuasiva é gerada no evento comunicativo, trata-se de uma palavra contemporânea, sensível à singularidade do ouvinte-leitor compreensivo. (BAKHTIN, 2010, p. 147)
O processo de libertação do domínio da palavra do outro passa, necessariamente, pela objetivação dessa palavra; processo esse que conta, ainda, com a influência, e a disputa, de outras vozes alheias. Tal processo de objetivação gera, fundamentalmente, a interrogação que, colocando-a em outra posição, revela de seus limites, sua fraqueza, seu caráter de objeto. (BAKHTIN, 2010, p. 148)
Assim, é a relação dialógica com a palavra do outro que revela novos aspectos dessa palavra porque ela não é tratada de um modo neutro; fala-se com a palavra, e não apenas refere-se a ela, penetrando-se, assim, no seu sentido ideológico, que, de acordo com Bakhtin (2010, p.151), está acessível apenas a uma cognição dialógica.
E uma cognição dialógica só é possível se entendermos o ato ético como fundamento básico da relação intersubjetiva entre o eu e o outro: o ato ético é o resultado da interação entre dois sujeitos radicalmente distintos, mas com valor próprio e autônomo equivalente[1].
Assim, entendemos a produção do texto escrito como uma das possibilidades de comunicação discursiva, uma vez que essa pressupõe a ética precisamente por ser dialógica, isto é, justamente por não prescindir de duas visões de mundo distintas e só se realizar com base em tal princípio.

Referências
BAKHTIN, M. Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: Hucitec, 2010
____________. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 7ª ed. São Paulo: Hucitec, 1995.
BRITTO, L.P.L. Contra o consenso: cultura escrita, educação e participação. São Paulo: Mercado de Letras (Coleção Idéias sobre Linguagem), 2003
BUBNOVA, Tatiana. (1997) El principio ético como fundamento del dialogismo en Mijaíl Bajtín. In: Escritos – Revista del Centro de Ciencias del Linguaje, nº 15-16, enero-diciembre, pp. 259-273. Puebla: Benemérita Universida Autónoma de Puebla
GERALDI, João Wanderley. (1995) Convívio paradoxal com o ensino da leitura e da escrita. Caxambu: Texto em versão preliminar, escrito para discussão em mesa-redonda do GT Alfabetização, Leitura e Escrita, 18ª Reunião Anual da ANPED.
GOULART, Cecília. Letramento e modos de ser letrado: discutindo a base teórico-metodológica de um estudo. Revista Brasileira de Educação. V. 11, n. 33, set/dez, 2006


[1] Bubnova (1997: 264-265) explicará que “os lugares que eu e o outro ocupamos no espaço não são simétricos nem iguais. Não são intercambiáveis sem que se distorça radicalmente o equilíbrio da relação. As respectivas visões do eu e do outro são únicas e autônimas. A interação entre dois sujeitos tão distintos por suas posições no mundo não pode levar-se a cabo no território interno de nenhum dos dois, mas sim [...] em um “entre” que os vincula como uma ponte.” E ainda acrescenta:  “O diálogo ontológico aponta para a concepção desta ponte como linguagem, fase que Bakhtin posteriormente atualiza, para passar do diálogo ontológico intersubjetivo ao diálogo social no “grande tempo””.

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