quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Eliana A. Albergoni de Souza

Cenas de escola [1]
Eliana A. Albergoni de Souza  
MeEL – UFMT
lia.albergoni@hotmail.com

Aula de História no sexto ano de uma escola pública estadual, a professora explica o Código de Hamurabi e o compara com o sistema judiciário brasileiro atual. Os alunos perguntam, querem saber mais sobre a legislação em voga, e ela entende não saber o suficiente para atendê-los. Não considera como opção ignorar o resultado da aula. Convida o técnico do laboratório de informática da escola, aluno do último ano de Direito para falar com os estudantes. Código Penal em mãos, uma breve explicação, momento de perguntas: muitas e variadas. O que as motiva? Novelas, seriados, noticiários, histórico familiar. Muitos alunos desta escola de periferia têm parentes, amigos ou vizinhos cumprindo pena.
Na cena acima, um assunto move os alunos, e a professora mobiliza recursos para mantê-los assim, já que é difícil vê-los neste estado. Não basta trazer mais livros para a sala, e o colega de trabalho está ali, ao alcance da mão. Apesar de apreensivo com a interação inédita, longe dos computadores, o estudante fala sobre o código, sua importância para a sociedade, e responde às perguntas: diferença entre roubo e furto, o que é apelação, pena em regime aberto, tempo de pena para assassinato, tráfico, muitos destes tópicos acompanhados de citações de nomes, de casos próximos. Grande parte dessa curiosidade se iniciou antes das aulas, no ouvir as falas da família.
Esta aula é uma cadeia de ações/respostas entre a prática pedagógica da professora e seus alunos: ela dá um lance, eles respondem e ela avança, eles respondem e ela pode ampliar ainda mais seu repertório de ações didáticas. Em Estética da Criação Verbal (p.308) o texto é entendido como enunciado, e o autor afirma que dois elementos o determinam como tal - a intenção/idéia e a realização desta idéia, sua concretização – e esta dualidade é que o geram; Em suas palavras “as relações inter-dinâmicas destes elementos, a luta entre eles, que determina a índole do texto”. Tomamos aqui a liberdade de assumir texto por evento, como um enunciado concreto, e entender ainda aula como texto/evento, para aplicar a este o que Bakhtin diz sobre o autor (falante/escritor) ou o primeiro sujeito, e o segundo sujeito, “aquele que reproduz (...) e cria um texto emoldurador (que comenta, avalia, objeta, etc.): é do embate entre estes dois elementos, na dialogia, que se constrói o texto/aula. A professora elabora uma aula, da interação com os alunos surge uma resposta que gera outra aula. Somente uma compreensão de acabamento pode permitir esta prática reflexiva e positivamente responsiva. A professora leva a mesma prática para as outras duas salas de sexto ano e obtém respostas também. Desta interação coleta material para refletir sobre a prática, e considerar se seu movimento se coaduna com suas convicções sobre o que é ensinar, ou num sentido mais amplo, o que é educação. Ação-reflexão-ação, numa contínua dialogia. Segundo Sobral (2008, p21) “o ato responsável envolve o conteúdo do ato, seu processo, e, unindo-os, a valoração/avaliação do agente com respeito a seu próprio ato, vinculada com o pensamento participativo.” Ato responsável não só no sentido de “resposta” mas de assunção de autoria, de tomada de posição ideológica.
A posição ideológica de quem protagoniza o ato de ensinar dita suas ações em sala, pelo menos no que diz respeito ao planejamento, preparo e execução de aulas. Este pensamento nos parece estar alinhado com Geraldi (1997) “toda e qualquer metodologia de ensino articula uma opção política – que envolve uma teoria de compreensão e interpretação da realidade- com os mecanismos utilizados em sala de aula”. Para esta professora, ouvir e observar os alunos faz parte de sua prática e a leva a experimentar ter uma outra voz em sala, que não a sua, e por mais simples que possa parecer ter convidados em sala, esta atividade requer disposição e coragem, tendo em vista o comportamento difícil das turmas em questão. Neste caso, o que importa não é a imagem do educador perante um outro profissional, mas a iniciativa do querer saber dos alunos. Em nosso entender, a professora validou sua ideologia quanto ao educar: ir além do livro didático e do conteúdo estipulado pelo PPP da unidade escolar. Na verdade, podemos afirmar que se alinhou o conteúdo planejado com a realidade sócio-histórica destes indivíduos: de que adianta, para estes, estudar a história de um código morto se isto não levar a uma reflexão e conhecimento do presente?
A nosso ver, além dos conceitos de Bakhtin e seu Círculo, dialogamos também com Geraldi e seu texto “A aula como acontecimento” (2003 ps 96 e 97): a diferença entre as situações relatadas, em uma ignora-se o contexto sócio-histórico, a vida dentro e fora da escola; Na segunda, opta-se por permitir aos estudantes satisfazer curiosidades, nascidas de suas vidas. Não se tratou de debates sobre o certo e errado, vícios e virtudes, mas da realidade da lei, que existe cristalizada num código e que se realiza duramente na vida de quem se vê ante a justiça: crimes, transgressões, punições e penas. Pensamos que neste segundo caso, um pouco do sugerido pelo autor já foi colocado em prática:
 “(...) o professor do futuro, a nova identidade a ser construída, não é a do sujeito que tem as respostas que a herança cultural já deu para certos problemas, mas o sujeito capaz de considerar o seu vivido, para transformar o vivido em perguntas. O ensino do futuro não estará lastreado nas respostas, mas nas perguntas. Aprender a formulá-las é essencial. Na lição de Saramago “tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas”. (Geraldi, 2003, p.95)

E cremos que ser este um ótimo mote para direcionar a prática pedagógica, gerar perguntas. Além de Geraldi e Saramago, uma recente propaganda do Canal Futura endossa a sugestão, apresenta as seguintes questões: “E se a ciência e a religião fizessem as pazes? Se o mundo tivesse onze dimensões ou se fosse possível prever o futuro?”. Parece-nos que aprender a conduzir os estudantes a fazer perguntas é hoje um desafio que se impõe aos educadores. Se a questão é pensar a educação como resposta responsável, nos parece que um posicionamento consciente e ancorado na noção de responsabilidade é essencial.
Assim, nos baseando nos conceitos bakhtinianos, expressos inclusive pelos autores citados, podemos pensar que há dois movimentos responsivos na cena geradora deste texto, sendo um o resultante da interação em sala, que gera textos/aulas e um outro anterior, aquele que possibilita este momento, que é o do profissional ideologicamente colocado, consciente de sua posição nesta cadeia enunciativa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikail [1952-1953]. Os gêneros do discurso. In:______. Estética da Criação Verbal. Trad. de Paulo Bezerra, 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
GERALDI, Wanderlei. Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_________. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
SOBRAL, Adail. Ato/atividade e evento. In: BRAIT, Beth (org.) São Paulo: Editora Contexto, 2008.


[1] Aluna do Programa de Pós-graduação do Mestrado em Estudos de Linguagens/MeEL / UFMT, orientanda da professora doutora Simone de Jesus Padilha.

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