quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Marcus Vinicius Borges Oliveira

O fazer fonoaudiológico e o ato responsável
Marcus Vinicius Borges Oliveira
zanomia@hotmail.com
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

I
Este texto é uma forma de descrever parte de uma atividade profissional como fonoaudiólogo, em que tenho trabalhado diretamente com a educação, mais especificamente, com a educação especial, e de tentar dialogar responsivamente com as (in)definições em torno da dislexia.
Para tanto, inicio dizendo que trabalhei durante dez meses em um Centro Municipal Educacional de Atendimento Especializado (CEAT), no município de Barra Mansa, no estado do Rio de Janeiro. Este trabalho me levou a criar novos olhares e abordagens, por exigir muito mais do que simples transferências de procedimentos teóricos metodológicos da clínica para a escola.
O que me preocupava, naquela prática educacional, não eram as crianças ditas “especiais”, mas sim que vinha recebendo um número enorme de crianças que já chegavam a mim rotuladas como disléxicas. Junto destas vinha uma enorme expectativa com relação à minha hipótese diagnóstica de confirmação dessa condição.  E normalmente os professores saíam frustrados com a minha fala mais comum, de que era preciso conhecer mais, acreditar mais, saber ser “mais criança”.
Segundo Sobral (2008), os atos podem ser estudados em dois planos. Um que se refere aos atos como atividades, tendo em comum tudo aquilo que pode ser repetível, e o ato como evento concreto, praticado dentro de um contexto definido, por sujeitos singulares. Para o autor, o pensamento bakhitiniano se estabelece com originalidade no diálogo que acontece entre essas instâncias.
Como devo me relacionar com este sujeito se, no momento em que ele chega a mim, ele já foi reduzido ao repetível, ao rótulo, ao potencial negativamente definido, dado de antemão por uma noção insuficiente da apropriação da escrita? Essa noção, que não respeita a singularidade de cada ato/indivíduo, muitas vezes baseia-se em enquadrar sujeitos em categorias previamente definidas, com o propósito unicamente normatizador. Essa é a prática clínica em que o fonoaudiólogo funciona da mesma forma como historicamente originou-se (BERBERIAN, 2000), com um propósito de identificar e tratar os indivíduos escolares. É necessário reposicionar-se.
Ao categorizar a criança, deve-se ter em mente que ela não passa a ser uma representação amorfa de determinada categoria. Caímos aqui, segundo Ponzio (2010a, p.20), na armadilha mortal da identidade,  ao opormos disléxicos e não disléxicos, assim como no exemplo do autor, dado para distinção entre professores e alunos, opomos e cancelamos diferenças. “Entre essas duas identidades, entre essas duas diferenças, existe uma relação de oposição e, ao mesmo tempo, dentro delas acontece um cancelamento de cada diferença singular”.
Onde escondemos o sujeito da dislexia? Talvez seja no mesmo local onde se esconde o sujeito do fonoaudiólogo. Esquece-se que “cada um é único, mas serve o Outro que te diga único” (PONZIO, 2010a, pág.23). O outro, aquele único que pode, com o seu excedente de visão, conferir acabamento, posicionar-se axiologicamente frente àquele outro.
Essa singularidade, a que se refere Bakhtin (2010/1920-1924[1]), de forma alguma teria relação com esse indivíduo associal. Nas palavras de Ponzio (2010b, p.23), não teria nenhuma relação com esse indivíduo “reduzido a uma entidade puramente biológica, confinado na esfera das necessidades fisiológicas, e no qual o corpo mesmo tenha sido suplantado pela abstração do organismo e a sua unidade tenha sido substituída pela divisão em órgãos”.
Esse corpo, compartimentado e disléxico, fala através da dificuldade de leitura e escrita, como se esta fosse a sua característica primordial.  Memória, atenção, percepção, são analisadas como se fossem independentes e dissociadas, como se fizessem mesmo parte de um corpo dividido em partes. Perdem-se o todo, o diálogo entre as partes, a integralidade dessas funções psicológicas superiores (LURIA,1981). 
Este é um primeiro ponto, que nos conduz a outros. Além da negação da singularidade, dentro desse modelo clínico, o que leva o sujeito a ser considerado disléxico são saberes sobre o aprendizado da língua em sua modalidade escrita, aqui encarada como um sistema objetivo e abstrato, como uma entidade que paira sobre nossas cabeças e que pode ser plenamente medida através de testes e procedimentos protocolados.
Nesta língua, não há lugar para sujeito (e nem para o seu silêncio), não há lugar para os mal-entendidos e, sem isso, não há lugar para compreensão (PONZIO, 2010a).
Essa crítica à utilização do objetivismo abstrato como realidade concreta da língua foi apresentada por um dos integrantes do círculo de Bakhthin, Volochinov (1995/1929-1930), por tratar-se de uma teoria que, ao remeter a uma abstração, não pode servir de base à compreensão e à explicação dos fatos linguísticos concretos, situados dentro dos contextos enunciativos. Mas parte dessa crítica já aparecia, de outra forma, anos antes, pelo próprio Bakhtin: “Nenhuma orientação prática da minha vida no mundo teórico é possível: Nele não é possível viver, agir responsavelmente, nele eu não sou necessário, nele, por princípio, não tenho lugar.” (BAKHTIN, 2010/1920-1924, p. 52).
Aponto aqui para um certo desconhecimento da área clínica, ao estudar a língua (e não somente na dislexia, mas também em muito do que lemos na Neurolinguística), sobre os estudos da linguagem enquanto processo evolutivo esculpido através de enlaces históricos e sociais. Ao tratar os processos enunciativos, substancialmente concretos, como meramente abstratos, retira-se o social da língua e, sem isto, os signos perdem a profundidade do seu caráter ideológico.
Esse esvaziamento do sujeito, enquanto ser social e situado, pode ser visto nas próprias concepções que embasam a dislexia. De acordo com a ABD (Associação Brasileira de Dislexia, 2011), a dislexia não pode ser resultado de má alfabetização, desatenção, desmotivação, condição socioeconômica inadequada, baixa inteligência nem desordens afetivas anteriores ao período escolar.
Não podemos tentar discutir essa questão sem passarmos por outros planos que a situam historicamente. “Compreender um objeto significa compreender o meu dever em relação a ele (a orientação que preciso assumir em relação a ele), compreendê-lo em relação a mim na singularidade do existir-evento: O que pressupõe a minha participação responsável, e não a minha abstração” (BAKHTIN, 2010/1920-1924, p. 66) .
Faz parte do posicionamento responsável considerar a dislexia além do ponto clínico, fazendo-a dialogar, enquanto evento/ato/atividade, com os demais planos que se relacionam em seu caráter de processo e produto. Faz-se necessário tomar posições frente à compreensão de um “não-álibi” do existir, que me permitam fazer outras perguntas, inclusive de quão ideal seria esse sujeito disléxico caracterizado acima. De que condições de idealização estamos falando aqui ? 
Estamos falando de boas escolas, com condições apropriadas de ensino,  bons professores, bem remunerados, uma boa política pedagógica, com planos e materiais pedagógicos que ofereçam oportunidades de aprendizado, que motivem os alunos em torno da apropriação da linguagem escrita. Falamos de um sujeito com condições sociais adequadas, sem desordens afetivas...  Acredito que conseguir esta confluência de fatores, inclusive diante da nossa realidade brasileira (mas não apenas nesta), beira o impossível.
A realidade que eu vejo nas escolas, principalmente públicas, realidade esta que ultrapassa as barreiras da cidade de Barra Mansa, são planos pedagógicos nem sempre eficientes, professores sendo desrespeitados, como se fossem os grandes “culpados” (muitas vezes se esforçando ao máximo para conseguir dizer algo aos alunos), e um descaso, não apenas governamental, com a educação do país como um todo. Vejo uma política de números que pouco refletem, qualitativamente, a realidade das salas de aula.
Em termos de aprendizado, o disléxico seria aquele que está atrasado acentuadamente, com características próprias que o impediram de ler no mesmo ritmo que os outros. Esta definição pouco se distancia de um modelo médico escolar que propunha a separar alunos por turmas de melhor e pior rendimento (BARBERIAN, 1995), através de testes que supostamente poderiam predizer a capacidade do indivíduo (como testes de QI), antes mesmo deste chegar à sala de aula.
Sobre a condição socioeconômica adequada, podemos dizer, de acordo com o Censo 2010 (IBGE, 2011), que um a cada três domicílios tinha no ano passado rendimento per capita  de até meio salário mínimo (no caso desta pesquisa, R$ 255,00). Se considerarmos até um salário mínimo per capita, o percentual sobe para cerca de 60%, chegando a alarmantes 80%, em média, na região Nordeste. Isto parece adequado?
O que posso esperar de um diagnóstico que tem como pressuposto condições socioeconômicas e pedagógicas adequadas na situação deste país em que vivo? Será que este diagnóstico não colabora para escamotear os investimentos e o quadro educacional de um país que não valoriza a educação? Será que este tipo de ação não é mais conveniente num lugar onde os parlamentares são os mais caros do mundo (custam mais de dez milhões de Reais por ano, cada um), mas que é incapaz de pagar salários dignos aos professores? De que forma isto contribui ao excesso de patologização[2] nas escolas ?  
Cruzeiro do Sul
Mude uma letra
meu rapaz
E o caos pode
virar cais
II
Na segunda parte desta discussão, busco retomar o seu começo, em que comento a minha vida profissional. A partir de agora passo a narrar um episódio ilustrativo sobre o tema abordado, de forma breve, tentando demonstrar como o rótulo da dislexia pode gerar um impacto que vai além do seu caráter clínico.
No dia 11 de maio de 2011, LS, com 10 anos de idade, cursando o terceiro ano do Ensino Fundamental,  foi atendido devido a uma solicitação de sua escola. O seu relatório dizia que ele não aprendia a ler “de jeito nenhum”.
 A partir de uma situação de interação dialógica, envolvendo a oralidade e a linguagem escrita, utilizando-me de revistas em quadrinhos, pude perceber que LS estava em pleno processo de  apropriação da linguagem escrita. Ainda que com dificuldades, LS criou hipóteses que demonstraram o seu direcionamento para o “desvendar” do mundo próprio da escrita e de suas  relações com a fala. Durante a leitura compartilhada, ele se mostrou interessado, colaborativo e realizou as atividades propostas.
Baseado no que foi apresentado, ressaltei no meu relatório a importância do investimento pedagógico nesta apropriação da leitura, salientando o papel fundamental do mediador neste processo, que deve basear-se em gêneros discursivos que façam sentido ao aluno e que despertem neste prazer e interesse.
Ao conversar com a escola, senti uma grande resistência ao que era dito, uma dificuldade em ouvir palavras que não deveriam estar ali. Palavras que negavam que residiam sobre uma “doença”,  suspensa no ar, as questões de aprendizado de LS. A escola dizia que havia algo de errado com LS, que os outros aprendiam, mas ele costumava escrever sempre com as mesmas letras, “fingindo que sabia escrever alguma coisa”.
Depois conversei com a família, que me ouviu parecendo não entender o que eu dizia, sem saber o que se passava nem o que LS estava fazendo ali. Senti que, pelo menos nessa questão, talvez LS estivesse completamente solitário. No fundo, me pergunto como ele e outros conseguem seguir na indiferença. Essa indiferença do existir.
É precisamente no lugar dessa indiferença que acredito que devo me colocar,  já que todos precisamos de um outro que nos faça reconhecer que ocupamos um lugar único, irrepetível, singular (BAKHTIN, 2010/1920-1924).
Para tanto, se faz necessário um reposicionamento do fonoaudiólogo, dentro da própria história da fonoaudiologia, como profissional normatizador de um ideal de língua (BARBERIAN, 2000). Neste reposicionamento, ao invés da categorização do repetível, deve-se dialogar com a unicidade, pois não existem álibis para o sujeito responsabilizado, apenas o reconhecimento de sua singularidade:
Nesse preciso ponto singular no qual agora me encontro, nenhuma outra pessoa jamais esteve no tempo singular e no espaço singular de um existir único. E é ao redor ponto singular que se dispões todo o existir singular de modo singular e irrepetível. Tudo o que pode ser feito por mim não poderá nunca ser feito por ninguém mais, nunca. A singularidade do existir presente é irrevogavelmente obrigatória. Esse fato do meu não-álibi no existir, que está na base do dever concreto e singular do ato, não é algo que eu aprendo e do qual tenho conhecimento, mas algo que eu reconheço e afirmo de modo singular e único (BAKHTIN, 2010/1920-1924, pág. 96).

Para finalizar esta discussão, pergunto-me também qual foi o percurso singular percorrido por LS até o terceiro ano. Não só dele, mas de outros que eu atendo. E fico cheio de dúvidas, cheio de angústias de saber quando dialogar, silenciar, escutar... No meio das questões, sinto que um posicionamento ainda mais contundente e responsável se faz necessário, mas no mínimo uma frase reconfortante ecoa na minha cabeça – Se ele finge que sabe escrever, é porque gostaria de saber.

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO
ABD (Associação Brasileira de Dislexia), disponível em http://www.dislexia.org.br/, acessado em 26/06/2011.
BAKHTIN, M.M. Para uma filosofia do ato responsável, Ed. Pedro e João, São Carlos, 2010/1920-1924.
BARBERIAN, A.P. Fonoaudiologia e educação; Um encontro histórico. São Paulo, SP, Ed. Plexus, 2000.
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/ , acessado em 26/06/2011.
LURIA, A.R. Fundamentos de Neuropsicologia, Ed. Universidade de São Paulo, Rio de Janeiro, RJ, 1981
PONZIO A. Procurando uma palavra outra, Ed. Pedro e João, São Carlos, SP, 2010a.
PONZIO A. A concepção bakhtiniana do ato como dar um passo, In: BAKHTIN, M.M. Para uma filosofia do ato responsável, Ed. Pedro e João, São Carlos, SP, 2010b. 
SOBRAL,A. Ato/atividade e evento, In: Beth, B. Bakhtin: conceitos-chave 4 Ed., São Paulo, Ed. Contexto, 2008.
VOLOCHINOV, V.N. Marxismo e filosofia da linguagem, Ed. Hucitec, São Paulo, 1995/1929-1930.


[1] A referência apresenta a data da publicação da versão utilizada/data da publicação original.
[2] Para uma maior aprofundamento sobre este tema, sugiro a leitura dos textos da pesquisadora Coudry, M. I. Incluindo   o texto intitulado “Excesso de patologização na escola e na clínica”, de 2010.  

Um comentário:

  1. Querido Marcus.
    Acertar nem sempre é fácil. Somente pelo fato de querer, já te faz especial.Em meio ao caos que vemos por aí, não liga, vc é cais...

    "... quanto mais simplicidade, mais sincero o bom dia..."

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