quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Welington da Costa Pinheiro, Luciana Dias da Costa, Michelle Araújo de Oliveira

O ensino e aprendizagem da leitura enquanto prática responsiva
Welington da Costa Pinheiro – UFPA¹
Luciana Dias da Costa – UFPA²
Michelle Araújo de Oliveira – UFPA³

(...) é necessário recordar vigorosamente que não existe nenhum texto fora do suporte que o dá a ler, que não há compreensão de um escrito, qualquer que ele seja, que não dependa das formas através das quais ele chega ao seu leitor. (Roger Chartier).
O presente estudo tem por objetivo estabelecer discussões acerca do ensino e aprendizagem da leitura em uma perspectiva que considera esta como sendo um processo de construção de sentidos, no qual o leitor e o autor do texto interagem de forma dialógica. Desta forma, o leitor tem a possibilidade de buscar o conhecimento de forma ativa, não aceitando como verdade absoluta e inquestionável as informaçõespresentes em determinado objeto lido. Para tanto, este trabalho se alicerça na noção de atividade responsiva ativa proposta pelo pensador Mikhail Bakhtin (1895-1975)
De acordo com os pressupostos bakhtinianos, o ouvinte, ao receber e compreender a significação de um discurso, segundo Bakhtin (1997, p.290), adota simultaneamente uma atitude responsiva ativa, na qual ele concorda ou discorda, completa ou adapta, apronta-se para executar. Tal atitude do ouvinte está sendo elaborada desde o início do processo de audição e compreensão do discurso, como se observa:
A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhado de uma atitude responsiva ativa (conquanto o grau dessa atividade seja muito variável); toda a compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor. A compreensão passiva das significações do discurso ouvindo apenas o elemento abstrato de um fato real que é o todo constituído pela compreensão responsiva ativa que se materializa no fato da resposta fônica subsequente.    
            A compreensão responsiva constitui-se como a fase inicial e preparatória para uma resposta. O locutor procura agir no outro a fim de que este apresente uma atitude que pode vir, por exemplo, por meio de uma resposta, em outras palavras, o locutor procura instaurar no outro um convite para que ele interaja em uma espécie de jogo discursivo. A esse respeito, Bakhtin (1997, p.291) esclarece que
A compreensão responsiva ativanadamais é senão a faseinicial e preparatóriapara uma resposta (seja qual for suaforma de realização). O locutor postula estacompreensão responsiva ativa: o queeleesperanão é uma compreensãopassiva, queporassimdizer duplicaria seupensamento no espírito do outro, o queespera é uma resposta, uma concordância, uma adesão, uma objeção, uma execução.
           
Segundo Flores e Teixeira (2005), Bakhtin mostra sua concepção de enunciação como um produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados, mesmo que o interlocutor seja uma virtualidade representativa da comunidade na qual está inserido o locutor, e propõe, dessa forma, a ideia de interação verbal realizada por meio da enunciação.
            A postura ativa assumida pelo outro na comunicação expressa a noção de dialogismo presente nos estudos bakhtinianos. A interação que se estabelece por meio da resposta ou compreensão por parte dos interlocutores implica uma relação dialógica, já que os locutores no instante do processo de interação verbal participam de forma conjunta para construção do sentido no discurso.  Brait e Melo (2005, p.156) afirmam que Bakhtin analisa a dialogia entre ouvinte e falante como
[...] um processo de interação “ativa”, quer dizer, não está no horizonte de sua formulação o clássico diagrama espacial da comunicação fundado na noção de transporte da mensagem de um emissor para um receptor, bastando, para isso, um código comum. Para Bakhtin, ‘Todo discurso só pode ser pensado, por conseguinte, como resposta. O falante, seja ele quem for, é sempre um, contestador em potencial.
           
A noção de comunicação, como ação dialógica, passa a conceber a linguagem como um ato interativo, social, histórico e ideológico. A comunicação humana será enfocada como um processo de construção coletiva que se dá pela inter-relação entre o locutor e o outro, propiciando um entrelaçamento de várias vozes discursivas. No que concerne a concepção do outro em Bakhtin, entende-se que
[...] o outro de que fala Bakhtin é condição do próprio discurso porque não é identificado nem com um interlocutor físico, nem com o objeto do discurso. O dialogismo acena concomitantemente para um atravessamento de outros discursos, constitutivo da própria língua, realizado por um jogo fronteiriço. Acena, também, para um atravessamento do sujeito pela alteridade da interlocução. (FLORES ; TEIXEIRA, 2005, p.59).
           
Desse modo, referir-se a dialogismo é pressupor um “princípio”, uma “propriedade polivalente”, que constitui as noções desenvolvidas e se instaura como uma constante comunicação com o outro, cujo processo não comporta observações estanques. O princípio dialógico em Bakhtin traz uma abordagem da “não-finalização” e do “vir-a-ser”, configurando, com isso, um princípio da “inconclusividade”, da preservação da heterogeneidade, da diferença, da alteridade (DI FANTI, 2003).
            A partir dessa noção de comunicação proposta por Bakhtin, percebe-se que a leitura no âmbito escolar não pode mais ser tratada de modo que os alunos sejam sujeitos incapazes de se posicionar perante um texto, na verdade, o professor precisa estimular e orientar os discentes para que eles possam compreender que os textos estão condicionados sócio-historicamente, logo, são passiveis de refletirem variados discursos.
A leitura, desse modo, precisa ser tratada de forma crítica, pois somente assim o ato de ler pode assumir uma função significativa para a formação reflexiva dos indivíduos e da educação de modo geral. Para Freire (2001), a educação enquanto meio de libertação,só é possível se a leitura for abordada no contexto escolar de maneira crítica, participativa e contextualizada à realidade dos estudantes. A leitura, então, deve ser concebida enquanto uma prática que tem a potencialidade de contribuir para a aquisição de conhecimentos e desenvolvimento da consciência crítica, fornecendo subsídios para uma maior compreensão e reflexão sobre o mundo.
Nesse sentido, nota-se que leitura é uma prática de inegável importância para os indivíduos, pois na sociedade se privilegia predominantemente a modalidade escrita da linguagem e para que o sujeito possa participar de determinadas atividades sociais, saber ler, no sentindo amplo deste termo, torna-se fundamental. Entretanto, não se pode perder de vista que a leitura é uma prática condicionada a fatores históricos e sociais, logo, não pode ser idealizada como redentora de uma sociedade, haja vista que ela vai sempre receber influências de ideologias e valores hegemônicos, o que pode fazer do ato de ler, em alguns casos, uma forma de alienação (BRITO, 2003).
De acordo com Chiappini (2005), a leitura é uma arma frequentemente utilizada para dominar, com o pretexto de que se está possibilitando acesso à informação. Os textos, neste caso, lidos fragmentariamente e seus enunciados destacados do contexto podem acabar provocando leituras tendenciosas, muitas vezes, para justificar e/ou disfarçar ideias autoritárias.
A escola enquanto uma das principais instituições responsáveis pelo processo de ensino-aprendizagem da leitura ao longo da história (BECALLI, 2007), portanto, torna-se relevante na formação de leitores capacitados para fazer uso da leitura enquanto um instrumento que possibilite refletir e interpretar a sua realidade de maneira crítica, tendo a figura do professor enquanto mediador desse processo.
Partindo desses pressupostos, a escola não pode mais conceber a utilização de uma concepção tradicional de leitura na prática pedagógica dos docentes, visto que esta é subsidiada em um tratamento da leitura enquanto um ato mecânico que objetiva prioritariamente a decodificação da língua. O texto passa a ser concebido com um único sentido, não tendo a possibilidade de novas interpretações além daquelas textualmente explícitas pelo autor. Nas palavras de Marcuschi (1996), a concepção tradicional de leitura não estimula o desenvolvimento de um pensamento crítico e a capacidade de estabelecer inferências por meio do conhecimento prévio de mundo do aluno, uma vez que ele somente terá que “decifrar” as estruturas linguísticas impressas no papel.
No que concerne ao contexto atual escolar, os professores se deparam com alunos que, culturalmente, têm má vontade nas aulas de leitura e interpretação, uma vez que estes objetivam a buscar informações, como dito anteriormente, explícitas. Desta forma, o trabalho com leitura na escola tem sido algo árduo e difícil. Os discentes com os quais o grupo docente atua, em geral, não buscam a leitura reflexiva: muitas informações implicitamente sugeridas não têm tido sua verdadeira relevância nas aulas de leitura, o que prejudica a formação do aluno crítico.
Ler de maneira crítica e reflexiva, na realidade,pressupõe uma abordagem discursiva de leitura, na qual autor e leitor estão sócio-historicamente determinados e ideologicamente constituídos, ou seja, a leitura se dá em condições sociais e históricas pré-determinadas. A leitura passa a ser concebida, então, como um processo em que a interpretação estará relacionada a um dado momento e lugar.
A postura do leitor em relação ao texto parte não de um observador passível, mas sim a partir de um olhar carregado de subjetividade, queé construído por meio da historicidade do sujeito, constituída com base nas relações sociais que este teve contato desde sua origem enquanto sujeito. Para Coracini (2005), na visão discursiva, os textos,sendo verbais ou não-verbais, serão sempre o resultado de uma rede constituída de fragmentos sempre vinculados à história e à ficção, pois toda história (realidade) é produto de interpretação, isto é, ficção, a qual está ancorada na realidade social do momento em que é produzida.
Nessa abordagem, o sujeito não interage com o texto, haja vista que se estaria estabelecendo sentido único para ele, mas com outros sujeitos inscritos no texto. A leitura é concebida não apenas como um local de compreensão, mais sim de (re) construção, ou seja, a leitura estará sujeita a “leituras” de acordo com o contexto social e histórico em que o sujeito está situado. Desta forma, ler discursivamente um texto é entendê-lo como uma construção social permeada de vozes discursivas.
A partir das questões pontuadas ao longo desse breve estudo, observou-se toda a importância de se efetivar o ensino de leitura como prática a qual deve ser apreendida pelos alunos no contexto escolar, a partir da compreensão desta como um produto social imbricado de discursos sociais. Desta forma, é necessário que o docente oriente, na sua atuação enquanto mediador do conhecimento, seus alunos a conseguir interagir e se posicionar de maneira dialógica perante os textos com os quais ele tem contato, procurando desvendar as informações não somente explicitas, mas principalmenteimplícitas que constituem os textos, bem como sua relação com o contexto social.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M.(VOLOCHINOV) Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:
Editora Hucitec, 1997.
BECALLI, F. Z. Ensino da Leitura no Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA). Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, 2007.
BRAIT, B;  MELO, R. de. Enunciado/ enunciado concreto e enunciação. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: contexto, 2005.

BRITO, L. P. L. Leitura e participação. In: Contra o consenso. Cultura escrita, educação e participação. Campinas: Mercado das Letras, 2003, p. 99-114.
CHIAPPINI, L. Reinvenção da catedral: Língua, Literatura, comunicação: Novas tecnologias e políticas de ensino. São Paulo: Cortez, 2005.  .
CORACINI, M. J. R. F. Concepções de leitura na (pós-) modernidade. In: Leitura: múltiplos olhares. Regina Célia de Carvalho, (org). Campinas, SP: Mercado das Letras; São João da Boa Vista, SP: Unifeob, 2005, p. 15-44.
DI FANTI, M. G. A linguagem em Bakhtin: pontos e pespontos. Veredas. Revista de Estudos Lingüísticos, UFJF, p. 95-111, vol. 7, n. 1 e 2, jan/dez 2005.
FREIRE, P. Ação cultural para a prática da liberdade e outros escritos. 9. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
MARCUSCHI, L. A. Exercícios de compreensão ou de copiação nos manuais de ensino de língua? Revista Em Aberto. INEP/MEC, 1996.

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