quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Vívian Bearzotti Pires

Memorial de iniciantes: o professor como alteridade
Vívian Bearzotti Pires
FAM/CEUNSP

Estes apontamentos dizem respeito ao mesmo trabalho sobre o qual escrevi para a última edição das Rodas de Conversa Bakhtinianas, em São Carlos-SP, em novembro de 2010. Ele encontra-se na convergência entre a lingüística, a educação e a psicologia, visto tratar-se de reflexões acerca de um projeto que venho desenvolvendo já há alguns anos com as práticas textuais em língua materna no ensino superior, em dois cursos de psicologia diferentes nos quais dou aula. São práticas de escrita autobiográfica que acontecem em paralelo com outros projetos de práticas textuais mais comuns ao meio acadêmico.
Começo propondo aos alunos ingressantes em Psicologia que produzam registros em forma de diário de pesquisa tomando como foco de sua pesquisa o processo inicial de formação, suas experiências de aprendizagem e de transformação – ou não – ao longo do semestre, de uma perspectiva mais livre no que diz respeito às formalidades do discurso científico. Ao final do semestre, eles retomam esses registros, bem como outros de natureza diversa – anotações de aula, leituras, etc – e produzem um breve memorial de formação inicial, agora também para uma disciplina introdutória da psicologia, que a toma como ciência e profissão, trata-se, portanto, de um projeto integrado entre ambas as disciplinas do curso.
Muitos autores têm orientado esse meu fazer além de Bakhtin e seu círculo – Benjamin (1985), Josso (2006), Pineau (2006) - conforme já apontei no citado texto anterior. No entanto, para este pequeno estudo que pretendo apresentar, é somente com Bakhtin que dialogo.
Na leitura que faço dos memoriais ao final do primeiro semestre de curso, diferentes questões têm se colocado para mim a partir do dizer sobre si desses estudantes de psicologia, dentre essas questões, mais especificamente tenho procurado compreender como se dá a relação de alteridade que se estabelece com o professor, não só eu, nesse lugar de professora de práticas textuais, mas também o professor da disciplina introdutória de psicologia como ciência e profissão, com a qual o laboratório de práticas textuais integra nesse projeto, e ainda, outros professores do curso que se interessam e lêem os memoriais, e que, portanto, participam do diálogo, mesmo que de modo menos direto, e ainda, os demais professores do curso que aparecem como personagens dessas narrativas.
Assim, ao produzirem o memorial, os alunos estão respondendo à solicitação que lhes é feita pelo projeto integrado das disciplinas de práticas textuais e psicologia como ciência e profissão, e também às demais disciplinas do curso.
Podemos dizer que todos esses professores, uns mais diretamente, outros menos, participam do diálogo que se estabelece e que se materializa, por parte dos alunos como produtores, nos textos (enunciados) dos memoriais.
A posição de quem propõe aos alunos essa prática de reflexão sobre si no processo de formação e que é assumida pelos diferentes professores, bem como o contexto das respectivas disciplinas, certamente, condicionam sua escrita, desde as características singulares da pessoa de cada professor em sua concretude, passando pelas disciplinas específicas, até o sentido de lugar social de professor que cada aluno carrega em sua memória, em sua história singular.
Quando digo que esses diferentes “professores” atuam sobre os memoriais-enunciados, penso – calcada em Bakhtin - que o fazem como alteridade à qual o memorial-enunciado responde e do qual espera resposta. Ocorre que essa alteridade não me parece constituir-se de maneira linear, simples e direta – mesmo que assim também o seja -, mas se constitui de maneira complexa, ou se preferirmos, múltipla.
Para procurar dar conta dessa multiplicidade e dessa complexidade dos destinatários que atuam como alteridade ao aluno-autor do memorial, ou ainda, das diferentes posições que o professor assume nessa interlocução é que me fundamento em Bakhtin (1993; 1997), sobretudo em trechos específicos de dois de seus escritos que aqui serão citados.
“A compreensão do todo do enunciado e da relação dialó­gica que se estabelece é necessariamente dialógica (é também o caso do pesquisador nas ciências humanas); aquele que pra­tica ato de compreensão (também no caso do pesquisador) pas­sa a ser participante do diálogo, ainda que seja num nível es­pecífico (que depende da orientação da compreensão ou da pes­quisa). Analogia com a inclusão do experimentador num sis­tema experimental (enquanto parte desse sistema) ou do ob­servador incluído no mundo observado em microfísica (teoria dos quanta). O observador não se situa em parte alguma fora do mundo observado, e sua observação é parte integrante do objeto observado.
Isto é inteiramente válido para o todo do enunciado e pa­ra a relação que ele estabelece. Não podemos compreendê-lo do exterior. A própria compreensão é de natureza dialógica num sistema dialógico, cujo sistema global ela modifica. Compreen­der é, necessariamente, tornar-se o terceiro num diálogo (não no sentido literal, aritmético, pois os participantes do diálogo, além do terceiro, podem ser em número ilimitado), mas a po­sição dialógica deste terceiro é uma posição muito específica.” (BAKHTIN, 1997, p. 355-6)

Aqui, podemos pensar o professor/alteridade como o terceiro (não aritmético) que toma contato com o texto de memorial e o compreende numa outra perspectiva de interlocução, porém, como propõe Bakhtin (1997), dentro do seu campo, mesmo o destinatário “primeiro”, concreto, lê/ouve as palavras do aluno e se percebe tanto na relação direta de interlocução, que vamos retomar adiante, mas também como esse terceiro que entra no diálogo, que, para compreender a resposta e produzir reposta, se desloca desse seu lugar concreto, participando de dentro do diálogo, mas de viés. É a posição do professor como pesquisador nas ciências humanas, para usar as palavras de Bakhtin.
O aluno-autor, mesmo que sem consciência, sabe da existência desse terceiro, e dirige-se a ele. Muitos momentos dos diversos memoriais nos permitem supor a interlocução dirigida a esse terceiro, por exemplo, numa crítica ou elogio feito sobre outro professor, ou sobre os professores envolvidos diretamente na proposta, anseios, desejos, concepções expressas que se dirigem a essa posição de alteridade.
O enunciado sempre tem um destinatário (com características variáveis, ele pode ser mais ou menos próximo, concreto, per­cebido com maior ou menor consciência) de quem o autor da produção verbal espera e presume uma compreensão responsi­va. Este destinatário é o segundo (mais uma vez, não no senti­do aritmético). (BAKHTIN, 1997, p. 356)

A posição de alteridade como aquele a quem se dirige o memorial, o destinatário, o segundo, aquele que o solicita, inclusive como tarefa acadêmica passível de avaliação, é a mais óbvia, a mais certa de todas. A modulação que essa posição imprime aos memoriais pode ser também explorada, ela ocorre, por exemplo, na tentativa de o aluno-autor do memorial, por meio dele, responder ao que lhe foi solicitado. Pode ser visto também como um dos momentos do diálogo nos quais se dá uma tentativa de sedução ou de crítica direta a esta posição de alteridade, a mais concreta e imediata.

Porém, afora esse destinatário (o segundo), o autor do enunciado, de modo mais ou menos consciente, pres­supõe um superdestinatário superior (o terceiro), cuja com­preensão responsiva absolutamente exata é pressuposta seja num espaço metafísico, seja num tempo histórico afastado. (O des­tinatário de emergência.) Em diferentes épocas, graças a uma percepção variada do mundo, este superdestinatário, com sua compreensão responsiva, idealmente correta, adquire uma iden­tidade concreta variável (Deus, a verdade absoluta, o julgamen­to da consciência humana imparcial, o povo, o julgamento da história, a ciência, etc.).
O autor nunca pode entregar-se totalmente e entregar to­da a sua produção verbal unicamente à vontade absoluta e de­finitiva de destinatários atuais ou próximos (sabe-se que mes­mo os descendentes mais próximos podem enganar-se) e sem­pre pressupõe (com maior ou menor consciência) alguma ins­tância de compreensão responsiva que pode estar situada em diversas direções. Todo diálogo se desenrola como se fosse pre­senciado por um terceiro, invisível, dotado de uma compreensão responsiva, e que se situa acima de todos os participantes do diálogo (os parceiros). (Cf. o cárcere fascista, ou o inferno, em Thomas Mann, sentido como in-audição absoluta, ausên­cia absoluta do terceiro.) O terceiro em questão não tem nada de místico ou de me­tafísico (ainda que possa assumir tal expressão em certas per­cepções do mundo). Ele é momento constitutivo do todo do enunciado e, numa análise mais profunda, pode ser descober­to. O fato decorre da natureza da palavra que sempre quer ser ouvida, busca a compreensão responsiva, não se detém numa compreensão que se efetua no imediato e impele sempre mais adiante (de um modo ilimitado). Para a palavra (e, por conseguinte, para o homem), nada é mais terrível do que a irresponsividade (a falta de resposta)”.  (BAKHTIN,  p. 356 – negritos meus, itálicos do autor).

Dentre as diversas posições apontadas como alteridade ao memorial, essa é a que mais tem me chamado a atenção; ainda que não seja assumida ou não seja compreendida pelo autor-aluno como sendo ocupada pelo professor, ele é, certamente, aquele que toma contato, que recebe e lê o texto, ouvindo as vozes desses diferentes sujeitos, naquilo que eles têm a dizer acerca de si em seu processo de formação, processo esse, ao mesmo tempo, singular e em grupo, num certo grupo em formação, daí que, se não atua como superdestinatário, visto não assumir a forma nem metafísica, nem mítica, nem ancestral, pode carregar em si – para o autor-aluno – o lugar de detentor, de portador de uma certa verdade, na ciência e na educação. Se não é o superdestinatário, o professor como alteridade se vê atravessado pelos valores que o mesmo carrega e representa.
O(s) superdestinatário(s) do memorial, num certo sentido, pode(m) ser assumido(s) pela instituição, na figura do coordenador do curso, por uma concepção de fazer pedagógico, concepção constituída pelos valores do autor-aluno, sendo atravessada ainda, pelas singularidades de cada sujeito, cada grupo, cada turma, cada instituição, na história que cada um desses sujeitos ou agrupamentos sociais viveu ao longo do processo de formação.
Qual é, ou quais são os superdestinatários aos quais se dirige o memorial?
Não há hipótese construída, porém é uma pergunta que o contato com esses memoriais nos permitirá responder, mesmo que provisoriamente.
 “ todo discurso existente não se contrapõe da mesma maneira ao seu objeto: entre o discurso e o objeto, entre eles e a personalidade do falante interpõe-se um meio flexível, freqüentemente difícil de ser penetrado, de discursos de outrem, de discursos alheios sobre o mesmo objeto, sobre o mesmo tema. E é particularmente no processo da mútua-interação existente com este meio específico que o discurso pode individualizar-se e elaborar-se estilisticamente. [...] O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento histórico e social, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social. Ele também surge desse diálogo como seu prolongamento, como sua réplica, e não sabe de que lado ele se aproxima do objeto. [...] É neste jogo complexo de claro-escuro que penetra o discurso, impregnando-se dele, limitando suas próprias facetas semânticas e estilísticas. A concepção do objeto pelo discurso é complicada pela interação dialógica do objeto com os diversos momentos da sua conscientização e de seu desacreditamento sócio-verbal.” (BAKHTIN, 1993, p. 85-6 – itálicos do autor)

Outra posição de alteridade que podemos supor – eu diria mesmo afirmar – que assume o professor nos memoriais dos autores-alunos é o de ser aquele/aquilo sobre quem/o que fala o memorial, a alteridade como objeto do discurso.
Mesmo em alguns memoriais que simplesmente não falam de nenhum professor, vemos que falam das disciplinas, dos conhecimentos com os quais travaram contato, das experiências de atividade que vivenciaram, assim, de algum modo, todos eles dizem respeito ao professor da disciplina que trabalhou com um certo conhecimento por meio de determinadas estratégias; ainda que não seja objeto explícito do dizer do autor-aluno, ele se faz presente também nessa posição de objeto do dizer do aluno de forma implícita.
Nesta posição objetificada, ele se torna tema dirigido ao superdestinatário, ele se mantém presente, ora elogiado em suas qualidades, ora denunciado em seus aspectos negativos.
Como objeto do dizer do autor-aluno, o professor, em suas versões “positiva” ou “negativa” em termos de valores, carrega muito do que é desenvolvido no trabalho acadêmico-pedagógico, mas carrega também valores arraigados no senso comum, o professor “bonzinho”, o “malvado”, o “legal”, o “confuso”, o “organizado”, o que “sabe demais”, enfim, há uma grande variedade de adjetivações a ele atribuídas, e que, por seu turno, explicitam o superdestinatário, visto que é possível dizer que é a ele que esse momento do memorial – como enunciado – é dirigido.
Procurei apresentar aqui de forma sucinta algumas indagações que tenho feito nesse trabalho que desenvolvo com os memoriais, estes, reafirmo aqui, me parecem constituir um gênero acadêmico que, por seu caráter subjetivo, autobiográfico, ainda que condicionado pelo proposta muita específica feita pelos professores, deixa entrever os sujeitos com os quais temos travado a relação pedagógica.
Compreender quem é o professor como alteridade para esses sujeitos tal como propõe Bakhtin teve neste texto um ensaio, merece mais, merece uma análise que permita confirmar e alterar essas primeiras impressões.

REFERÊNCIAS
BAKTHIN, M. O discurso no romance. Em: Questões de literatura e de estética – a teoria do romance São Paulo: HUCITEC/UNESP, 3ª ed., 1993.
                         O problema do texto. Em: Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2ª ed., 1997, p.325-358.
BENJAMIN, W. O Narrador.  Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política – ensaios sobre literatura e história da cultura. Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.197-221; p.221-232.
JOSSO, M. C. Os relatos de histórias de vida como desvelamento dos desafios existenciais de formação e do conhecimento: destinos sócio-culturais e projetos de vida programados na invenção de si. . SOUZA, E.C.; ABBRAHÃO, M.H.M.B. (orgs.) Tempos, narrativas e ficcções: a invenção de si. Porto Alegre/Salvador: EDIPUCRS/EDUNEB, 2006, p. 21-40.
PINEAU, G. As histórias de vida como artes formadoras de existência. SOUZA, E.C.; ABBRAHÃO, M.H.M.B. (orgs.) Tempos, narrativas e ficcções: a invenção de si. Porto Alegre/Salvador: EDIPUCRS/EDUNEB, 2006, p. 41-59.

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