quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Vanessa Souza da Silva

Educação como contrapalavra para o letramento das massas populares
Vanessa Souza da Silva - UERJ (doutoranda)

Resumo:
O presente texto objetiva apresentar a relevância da educação como contrapalavra para o letramento das massas populares. A partir do conceito de letramento como o estado ou condição de quem exerce as práticas sociais de leitura e de escrita no mundo letrado e do conceito bakhtiniano de contrapalavra, destacamos a educação como uma resposta responsável do poder público para alcançar o letramento.
Palvras-chave: Letramento; contrapalavra; educação; resposta responsável.

Introdução
Vivemos numa sociedade que vai se tornando cada vez mais centrada na escrita e que exige de seus falantes saber praticá-la. Com isso, defrontamo-nos, constantemente, com uma reflexão sobre o uso da língua escrita na vida e na sociedade e sobre a questão da inclusão ou exclusão que os indivíduos sofrem em virtude desse uso.
Sendo a linguagem o “caminho de invenção da cidadania” (Freire, 1993, p.41), é comum a preocupação como isso acontece no Brasil, tendo em vista que participamos de uma sociedade que tem a linguagem como “arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder” (Gnerre, 1985) e, por extensão, à vida social. Afinal, é na linguagem, pela linguagem e com a linguagem que o homem produz mundos e nele se produz, havendo um destaque para o uso social da palavra nesse contexto.
Ao se falar em linguagem, logo a linguagem escrita emerge para o estudo e o tema da alfabetização entra em campo. Entretanto, apenas decodificar palavras é insuficiente para a participação em práticas sociais que envolvem a língua escrita, é necessário algo mais: saber utilizar a leitura e a escrita de acordo com as contínuas exigências sociais. Esse algo mais é o que se vem designando letramento.
O letramento é um tema que se torna relevante como passaporte para o pleno exercício da cidadania, e, consequentemente, da inclusão social. Entretanto, ainda é uma dívida histórica que o país tem com seu povo. Daí a relevância da escola, nesse contexto, como uma contrapalavra para o letramento das massas populares.

Letramento: conceito
Como conceituar letramento? O letramento é uma palavra ainda não dicionarizada, tendo chegado ao vocabulário da Educação e das Ciências Linguísticas na metade dos anos 80. Trata-se da versão para a língua portuguesa da palavra inglesa literacy, que designa a condição de ser literate, ou seja, designa aquele que vive em estado ou condição de saber ler e escrever. É um tema que vem ganhando visibilidade no cenário educacional e mundial como sinônimo de desenvolvimento e aptidão linguística para muitos educadores.
O termo letramento parece ter sido utilizado pela primeira vez, no Brasil, por Mary Kato, na apresentação de sua obra No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística, em 1986. Seu livro tem o objetivo de destacar quais aspectos de ordem psicolinguística estão envolvidos na aprendizagem da linguagem escolar de crianças. O termo letramento está relacionado à formação de cidadãos “funcionalmente letrados”, capazes de utilizar a linguagem escrita para sua necessidade individual do ponto de vista cognitivo e atendendo à demanda social da sociedade que prestigia a língua padrão.
Mary Kato parece associar o termo letramento ao domínio individual do uso da linguagem escrita. Está intimamente ligado à habilidade de usar a língua na sua variedade culta, pois a norma-padrão seria “consequência do letramento”. Pode-se inferir desse contexto que é letrado aquele que domina essa variante da língua.
Depois de Mary Kato, uma contribuição valiosa para o tema, é trazida por Leda V. Tfouni. Em Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso (1988), a autora apresenta o termo letramento centrado nas práticas sociais de leitura e escrita e nas mudanças geradas por essas práticas em uma sociedade, quando esta se torna letrada. Ao estudar a linguagem de adultos não alfabetizados, segundo uma abordagem de caráter psicolinguística, Leda situa o letramento no âmbito do social, distinguindo-o da alfabetização, que se situaria no âmbito individual:
A alfabetização refere-se à aquisição da escrita enquanto aprendizagem de habilidades para leitura, escrita e as chamadas práticas de linguagem. Isto é levado a efeito, em geral, através do processo de escolarização, e, portanto, da instrução formal. A alfabetização pertence, assim, ao âmbito do individual.
O letramento, por sua vez, focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita. [...] tem por objetivo investigar não somente quem é alfabetizado, mas também quem não é alfabetizado, e, neste sentido, desliga-se de verificar o individual e centraliza-se no social mais amplo.” (Tfouni, 1988, p.9)

A autora retoma essas reflexões em Letramento e alfabetização, publicado em 1995, conceituando o termo em confronto com alfabetização: “Enquanto a alfabetização ocupa-se da aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema escrito em uma sociedade” (p.20). Tfouni reafirma a diferença entre alfabetização e letramento, destacando, mais uma vez, o caráter individual daquela e social deste. Ela o toma como sendo as consequências sociais e históricas da introdução da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando ela se torna letrada” (idem).
Ângela Kleiman, por sua vez, em Os significados de letramento: uma perspectiva sobre a prática social da escrita (1995)[1] considera que o letramento são práticas de leitura e escrita, e analisa duas concepções dominantes de letramento[2], relacionando o termo com a situação de ensino e aprendizagem da língua escrita por parte de crianças, adolescentes e adultos.
“Podemos definir hoje o letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos [...]. As práticas específicas da escola, que forneciam o parâmetro de prática social segundo a qual o letramento era definido, e segundo a qual os sujeitos eram classificados ao longo da dicotomia alfabetizado ou não alfabetizado, passam a ser, em função dessa definição, apenas um tipo de prática – de fato, dominante – que desenvolve alguns tipos de habilidades, mas não outros, e que determina uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita.” (Kleiman, 1995, p. 19)

Em texto posterior, a autora apresenta o letramento “como as práticas e eventos relacionados com uso, função e impacto social da escrita” (Kleiman, 1998, p.181). Segundo essa concepção, o letramento são as práticas sociais da escrita e leitura. São os eventos nos quais essas práticas são colocadas em ação, bem como as consequências delas sobre a sociedade em geral.
Enquanto Tfouni considera o letramento como sendo as práticas sociais e históricas da introdução da escrita em uma sociedade, considerando o impacto social da escrita na sociedade, Kleiman inclui as próprias práticas sociais de leitura e escrita e os eventos em que elas ocorrem na caracterização do letramento. Ambas as autoras, no entanto, consideram que o núcleo do conceito de letramento está além da simples aquisição da escrita e seu código (alfabetização). Em outras palavras, apenas saber ler não basta.
Entretanto, gostaria de destacar aqui o conceito de letramento atribuído por Magda Soares em Letramento: um tema em três gêneros (1998). A autora mantém o foco nas práticas sociais de leitura e de escrita e em algo além da alfabetização. Mas o letramento, para ela, (i) não são as próprias práticas de leitura e escrita ou (ii) os eventos relacionados com o uso dessas práticas (Kleiman), (iii) não se focaliza no impacto ou as consequências da escrita sobre a sociedade (Tfouni), (iv) nem está relacionado à formação de cidadãos “funcionalmente letrados” (Kato), capazes de utilizar a linguagem escrita para sua necessidade individual apenas. Para Magda Soares (1998), o letramento pode ser entendido como resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever, ou seja, o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita. Para autora, é considerado letrado aquele indivíduo que usa socialmente a escrita e a leitura, que as pratica, respondendo às demandas sociais que elas implicam.
Soares (1998) considera o letramento para além da alfabetização, como sendo “o estado ou condição de quem exerce as práticas sociais de leitura e de escrita, de quem participa de eventos em que a escrita é parte integrante da interação entre pessoas e do processo de interpretação dessa interação – os eventos de letramento” (p.145). Isso nos sugere que o letramento confere ao indivíduo um estado ou condição de inserção no mundo letrado que vai além das simples práticas de leitura e escrita.
Em suma, a autora vê imbricada ao conceito de letramento a condição ou estado de quem exerce efetivamente as práticas sociais de leitura e escrita, de quem participa de eventos de letramento. Por se tratar de uma palavra recente, pode-se notar que nem sempre são idênticos os significados que se vêm atribuindo ao termo letramento. Neste texto, ao utilizarmos essa palavra, estaremos nos referindo à concepção da educadora Magda Soares.

Educação como contrapalavra para o letramento das massas populares
Bakhtin concebe a categoria contrapalavra em sua obra Estética da Criação Verbal (2003), ao falar dos gêneros do discurso, quando trabalha a questão da alternância dos sujeitos do discurso. Para ele, o enunciado tem seu limite quando o falante interrompe sua voz para que a do interlocutor se faça ouvir, ou seja, para que haja a contrapalavra.
Segundo Bakhtin, todas as nossas falas são dirigidas em direção a alguém e desse auditório esperamos uma atitude responsiva. O falante não espera que seu pensamento seja dublado na voz do outro. Ele espera uma resposta, uma participação, um aceno, uma discordância, um gesto, enfim, uma atitude responsiva. E mais, ele espera desse ouvinte sua percepção avaliativa. Mesmo numa palestra em que alguém domina os turnos da fala, esse palestrante fala em função do seu auditório, levando em conta a atitude responsiva da platéia. Caso isso não ocorra, houve apenas um monólogo vazio e sem sentido, quebrando o laço dinâmico da natureza dialógica do enunciado e, consequentemente, da linguagem.
A contrapalavra acaba sendo, nesse contexto, uma atitude responsiva do interlocutor. Ela acontece na alternância dos sujeitos do discurso. (Bakhtin, 2003, p. 279). A contrapalavra faz parte desse discurso. Compõe a estrutura dialógica da comunicação. É um elo na cadeia discursiva.
Considerando a relevância da noção de letramento como horizonte ético-político para o trabalho pedagógico (Goulart, 2000), vemos a educação, através da escola, como o locus privilegiado para que isso aconteça. A educação assume o papel de contrapalavra para o letramento de milhares de pessoas. Para as massas populares, a escola pública assume um papel decisivo, pois, em muitos casos, é a única agência de letramento dos alunos. Caso isso não ocorra, haverá apenas um monólogo vazio da população à espera de uma resposta responsável do poder público.
É através dela (educação) que o ensino da língua materna deve possibilitar que o educando use a linguagem socialmente, respondendo adequadamente às demandas sociais de leitura e escrita que a sociedade lhe impõe e a use como instrumento de luta social. Ela é a contrapalavra do poder público para o letramento. Nessa sociedade grafocêntrica na qual vivemos, é a educação assume o lugar de arena discursiva, lugar de embates e forças que se encontram e se opõem, se aproximam e se afastam, lugar de movimentos ideológicos e sociais. Lugar de contrapalavras... e de letramento das massas populares.

Considerações finais
É urgente que o poder público assuma seu lugar com eficiência para responder ao apelo da plena escolarização das massas populares rumo ao letramento. Elas esperam essa contrapalavra. Afinal, a função da educação, na área da linguagem, é introduzir a criança no mundo da escrita, tornando-a um cidadão funcionalmente letrado, isto é, um sujeito capaz de fazer uso da linguagem escrita para sua necessidade individual de crescer cognitivamente e para atender às várias demandas de uma sociedade que prestigia esse tipo de linguagem como um dos instrumentos de comunicação.
Colocar o letramento num patamar de destaque na educação pública acaba sendo, neste contexto, uma questão de vida, ainda mais se observarmos o baixo desempenho de nossos alunos nos testes que averiguam suas habilidades de leitura e escrita. No ano de 2006, o Brasil obteve média que o colocou na 48ª posição entre 56 países no exame do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos). Se observarmos os indicadores brasileiros como o SAEB, é notória também a preocupação para a função social da língua como requisito básico para que o indivíduo ingresse no mundo letrado, construindo seu processo de cidadania e integração à sociedade de modo participante e atuante. A educação é a resposta responsiva que a população espera para mudar esse quadro. Temos, de um lado, um elo nessa cadeia discursiva social que é a realidade retratada nesses exames; temos, do outro lado, como assinala Bakhtin, a espera de um acesso, de um gesto do poder público a esse apelo.
A matriz de referência que norteia as provas da Língua Portuguesa do SAEB (incluindo a Prova Brasil) é a atividade de “leitura”, objetivando verificar se os alunos possuem a competência de apreender o texto como construção de conhecimento em diferentes níveis de compreensão, análise e compreensão, o que exige um aluno letrado, com competências discursivas essenciais para ler e interpretar diversos gêneros discursivos. Entretanto, os resultados dos testes de 1995 a 2005 revelam que as médias de proficiência em Língua Portuguesa da 8ª série do Ensino Fundamental e da 3ª série do Ensino Médio caíram, revelando que nossos alunos terminam a educação básica sem o nível de letramento esperado. O que se espera é que a contrapalavra da educação em nosso país seja dada de modo satisfatório.

Referências bibliográficas
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
GNERRE, Maurizio. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1998 [1985].
GOULART, Cecília M. A. Uma abordagem bakhtiniana da noção de letramento. Trabalho apresentado no painel “Perspectivas Bakhtinianas para o Ensinar e Aprender”. 10º ENDIPE-  Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, UERJ, 2000.
KATO, Mary. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. São Paulo: Ática, 1986. KLEIMAN, Ângela. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado da Letras, 1995.
KLEIMAN, Ângela. Ação e mudança na sala de aula: uma pesquisa sobre letramento e interação. In: ROJO, R. (org.). Alfabetização e letramento: perspectivas linguísticas. Campinas: Mercado de Letras, 1998.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
TFOUNI, Leda V. Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso. Campinas: Pontes, 1988.
TFOUNI, Leda V . Letramento e alfabetização. São Paulo, Cortez, 2005.


[1] Esta obra, organizada por Ângela Kleiman, é uma coletânea de dez artigos que apresentam resultados de pesquisas que analisam sob diferentes perspectivas variadas concepções de letramento. Na primeira parte, trata das concepções dominantes de letramento e sua relação com a pesquisa e o ensino da escrita. Na segunda, das relações entre oralidade e escrita, através dos modos de participação da oralidade no letramento. Na terceira, apresenta as relações do sujeito não-escolarizado na sociedade brasileira e, por último, trata da ideologia do letramento na mídia e seus  reflexos na constituição do analfabeto adulto.
[2] Com base, principalmente em Brian Street, a autora apresenta duas concepções de letramento: o modelo autônomo e modelo ideológico. O primeiro modelo diz respeito às práticas de uso da escrita da escola. Esta concepção pressupõe que “há apenas uma maneira de o letramento ser desenvolvido, sendo que essa forma está associada quase que causalmente com o progresso, a civilização, a mobilidade social” (Kleiman, 1995, p.21). Contrapondo o modelo autônomo, o modelo ideológico pressupõe que há práticas de letramento, no plural, que são social e culturalmente determinadas, “e, como tal, os significados específicos que a escrita assume para um grupo social dependem dos contextos e instituições em que ela foi adquirida” (idem).

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