quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Tânia Guedes Magalhães

Literatura e ensino
Tânia Guedes Magalhães
tania.magalhaes@ufjf.edu.br
UFJF

As reflexões que pretendemos trazer, com este trabalho, referem-se ao campo do ensino da literatura, mais especificamente sobre a abordagem escolar do texto literário. O que temos percebido, nas últimas décadas, é que o tratamento didático que se dá ao texto literário anula, entre outras coisas, a plurissignificação que lhe é peculiar, bem como a abertura para uma discussão sobre questões sociais, culturais, além das estéticas. O texto literário, que oferece material rico em reflexão, provocando o leitor, deve estimular discussões para que sejam percebidos os vários aspectos da realidade que ele retrata; ele atua na nossa imaginação, aguça nossa curiosidade, contribui para nosso conhecimento e nos faz pensar nas diversas questões do ser humano e da vida. Embora essa questão já tenha sido bastante abordada nos meios escolares e acadêmicos, acreditamos ser de grande importância voltar a esse debate.
Temos visto, em cursos de formação continuada de professores e em contato com a realidade escolar, grandes dificuldades na abordagem do texto literário no ensino. Apresentamos algumas delas, relatadas em uma pesquisa realizada com alunos de Ensino Médio. A partir dessas dificuldades, trazidas pelos próprios alunos, podemos repensar o ensino de literatura. Segundo Soares (2002), com base em entrevistas e leituras compartilhadas em sala de uma escola pública de Brasília, a pesquisa trouxe à tona algumas dificuldades encontradas pelos alunos na leitura de textos literários, as quais passamos a compartilhar.
A dificuldade de acesso ao livro é um grande problema que as escolas públicas brasileiras enfrentam, o que desencadeia, em geral, um desestímulo à leitura. A leitura impositiva, muitas vezes, contribui para que o aluno vincule a leitura literária a trabalhos e notas. As deficiências na formação do leitor também são identificadas pelos alunos, que sentem falta de um trabalho mais sistematizado em que haja progressão nos níveis de leitura, partindo daquelas mais “fáceis” nas séries iniciais, que vão aos poucos se tornando mais densas, formando o leitor proficiente. Alguns alunos dizem que a escola não formou hábito de leitura durante sua escolarização, de forma que nas séries finais, são cobradas leituras “mais elaboradas”, para as quais eles não se acham preparados. A maioria não sabe o que é um clássico e por que deve lê-lo. A linguagem figurada também aparece como uma grande dificuldade para os alunos. As metáforas do texto literário em geral não são entendidas e a compreensão passa apenas pelo nível mais superficial. Além disso, entender o vocabulário, as construções sintáticas muitas vezes em desuso nos dias atuais, os costumes e os valores da época retratados nos textos também se torna um problema, que resulta em desinteresse. A falta de conhecimento do gênero de texto também apresenta-se como um aspecto que interfere na compreensão. Ademais, a falta de conhecimentos prévios para compreender citações e fazer relações intertextuais, por exemplo, prejudica a compreensão; assim, os alunos consideram a leitura “difícil”, pois exige conhecimentos extratextuais. A falta de linearidade de algumas obras literárias também é um ponto que traz dificuldades aos alunos – muitas vezes acostumados a narrativas triviais – já que muitos textos subvertem a ordem cronológica dos fatos.
Desse modo, o texto literário, que exige um nível de leitura mais avançado e representa um desafio, ao invés de alargar os horizontes da leitura torna-se desestimulante, cansativo e enfadonho para os adolescentes.
Diante de tantas dificuldades, algumas reflexões são pertinentes. Para além de juntar sílabas e frases, concordamos com os pressupostos de que ler significa compreender, e não apenas decodificar. Sendo assim, nas palavras de Koch e Elias (2006), encontramos a percepção do aspecto interativo da leitura, já que, segundo elas, o sentido é construído na interação texto-sujeitos. Dessa forma, a leitura é uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, levando-se em conta a interação autor-texto-leitor. Nessa concepção, “os sujeitos são vistos como atores/construtores sociais, sujeitos ativos que – dialogicamente – se constroem e são construídos no texto, considerando o próprio lugar da interação e da constituição dos interlocutores.” (p. 10-11). Nesse sentido, a literatura, como obra aberta, permite as múltiplas interpretações a partir das subjetividades.
Aliados a essa perspectiva, para a formação desse leitor, que constrói sentido para o texto, levando em conta suas vivências, sua formação e seu contato com sujeitos e com a sociedade, temos que ir além da leitura como compreensão e pensar na leitura literária como, por exemplo, fruição, como descoberta de ideologias e de caminhos distintos do senso comum. Ler literatura significa, entre outras coisas, ler textos por prazer, descobrir, sem objetivos didáticos. E não partir para o estudo teórico dos estilos de época a que estão ligados. Muitas práticas escolares, assim como propostas de livros didáticos, enfatizam o estudo dos estilos de época, suas características e biografias dos grandes autores. Acreditamos que essa não é uma prática que vai nos proporcionar a descoberta do texto.
            Outro aspecto importante é que precisamos criar espaços (currículos e programas mais abertos e diversificados) de modo que haja momento para a fruição do texto. Nesses espaços, incluímos o acesso às bibliotecas, feira de livros, rodas de leitura, rodas literárias, leituras escolhidas pelos alunos, atividades como projetos coletivos interdisciplinares, os esquecidos saraus. Esses espaços de leitura literária vão formando um leitor que sabe fruir o texto, além de fazer escolhas e refletir sobre elas. Tais atitudes proporcionam, gradativamente, um mergulho no mundo da arte da palavra, pois confere ao aluno não apenas “saber sobre” literatura, mas “ler” literatura (BARBOSA, no prelo).
Retomando as palavras de Tufano (2006), não deve ser objetivo da escola tornar os alunos  “críticos literários”, ou seja, alunos que estudam literatura apenas. “As noções de teoria literária aplicadas durante a análise de um só se justificam quando, efetivamente, contribuem para enriquecer a leitura e a compreensão de um texto (...)”.
            Nesse sentido, a escola precisa repensar seus programas, incluindo na sua progressão curricular textos literários diversos, de modo que haja uma promoção, em todos os níveis, do desenvolvimento de habilidades, que incluem o reconhecimento de metáforas, o reconhecimento de recursos linguísticos na construção da narrativa e do poema, a relação do texto literário com seu contexto histórico e social, a identificação de elementos de humor e ironia; a identificação de efeitos de sentido diversos, identificação e a função dos elementos da narrativa, a identificação e reconhecimento da função de recursos expressivos dos textos...
            Desenvolver o hábito de leitura exige contato com uma gama de obras de referência, pelo que os professores, infelizmente há muito já acostumados, devem continuar lutando: ter tempos e espaços exclusivos e apropriados a atividade de leitura na escola. A constante presença de textos literários no contexto escolar é um dos pressupostos básicos, não o único, para a formação do leitor: é necessário ter um bom acervo de acesso fácil e constante para os alunos.
Tomando o diálogo como necessário para o ensino e, consequentemente, para o desenvolvimento humano, a leitura literária proporciona a interação do aluno com o texto, explorando-o de diversas formas, fazendo emergir a troca. A literatura, como uma forma de conhecer a realidade, é também uma forma de refletir sobre o ser humano, sobre as contradições da sociedade, proporcionando-nos uma capacidade de análise crítica. Por isso, são fundamentais formação, atualização e leitura do professor, leitura associada ao prazer estético, para que construa com os alunos reflexões ricas sobre as obras literárias. No tocante aos clássicos, transcrevemos de Ana Maria Machado (2002) um trecho que trata da leitura dos clássicos na escola.
Clássico não é livro antigo e fora de moda. É um livro que não sai de moda. Tentar criar gosto pela leitura, nos outros, por meio de um sistema de forçar a ler só para fazer prova? É uma maneira infalível de inocular o horror a livro em qualquer um. O primeiro contato com um clássico, na infância e adolescência, não precisa ser com o original. O ideal mesmo é uma adaptação bem feita e atraente.
           
Os clássicos universais, segundo a autora, podem ser lidos desde cedo, já que vão compor a bagagem cultural do aluno. Ter acesso aos clássicos é dar ao aluno a capacidade de entender esse patrimônio artístico e cultural acumulado há milênios, que está disponível a todos. Essa leitura proporciona um distanciamento que nos tem ajudado a entender melhor o sentido de nossas próprias experiências, ampliando nossos horizontes. É interessante entender o mundo por diferentes autores, por inesquecíveis personagens, por diversas obras literárias.
            Por fim, gostaríamos de ressaltar que a escola não deveria ficar somente na formação do leitor com habilidades típicas do letramento funcional, ligadas à leitura de textos básicos para a vida diária do cidadão. A formação de um leitor literário significa a formação de um leitor que saiba escolher as suas leituras, que aprecie construções artísticas da linguagem, que aceita o pacto ficcional instituído na obra, numa época em que, supomos, os cânones literários possivelmente ficaram distantes do gosto dos jovens estudantes.
            Tentar uma humanização das relações através da literatura é compromisso que a escola deveria assumir. Acreditamos no ensino que propõe objetivos claros para a aprendizagem da Língua Portuguesa, assumindo programas dinâmicos e sistematizando conhecimento em termos de habilidades e ações voltadas à língua, na sua essência interacional, que caracteriza a escola como espaço de circulação de saber, de cultura e de aprendizado.
            É necessário estimular pesquisas sobre a leitura literária – bem como sobre sua escolarização – e promover a troca entre os interessados no tema – escola, universidade e sociedade – no sentido de construirmos experiências de fruição estética na tentativa de formarmos atitudes mais reflexivas em todos nós; assim, os valores, a humanização e o desenvolvimento intelectual do ser será possível no ensino.
Além disso, tomando como pressuposto que a literatura é indispensável, não pelo seu caráter utilitário, mas pelo seu caráter de transgressão, indo além da leitura ingênua e superficial, precisamos de tempo para amadurecer a leitura, reler, indo e voltando nas linhas dos textos que nos envolvem, que nos permitem ousar em interpretações para além das realizadas pelo professor, dando voz para que o aluno possa descobrir interpretações diversas. Assim pensamos em escolas que podem, realmente, ampliar, de modo crescente, as possibilidades de leitura dos nossos alunos.

Referências
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1988.
_______. Estética da criação verbal. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BARBOSA, B. T. Letramento literário: sobre a formação escolar do leitor jovem.  Revista Educação em Foco. Juiz de Fora: EdUFJF, no prelo.
KOCH, I. V.; ELIAS, V. M. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006.
MACHADO, A. M. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. 
SOARES, O. A leitura dos clássicos nacionais no Ensino Médio: por que é tão difícil? Um estudo etnográfico. Dissertação de Mestrado. Brasília, DF. Universidade de Brasília, 2002.
TUFANO, D. Literatura é aprendizado de humanidade. Apoio ao Professor. 2006. Ed. Moderna (disponível em http://literatura.moderna.com.br/moderna /literatura/apoio-ao-professor/artigos) (acessado em novembro de 2008)

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