quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Tânia Regina Peixoto da Silva Gonçalves

Movimento de construção de uma pesquisa na perspectiva bakhtiniana[1]
Universidade Federal de Juiz de Fora Mestranda em Educação PPGE/UFJF
Tânia Regina Peixoto  da Silva Gonçalves[2]

Ler sobre  Bakhtin e principalmente sobre suas ideias é algo que exige profunda reflexão e tempo de maturação. Freitas, 2011.

INTRODUÇÃO
Há alguns anos venho ponderando estudar Mikhail Bakhtin com a finalidade de conhecer suas contribuições para a  Educação. Essa oportunidade   concretizou-se no Mestrado  em Educação no decorrer da disciplina Processos de Pensamento e Linguagem em Bakhtin com a professora Drª. Maria Teresa Assunção Freitas[3].
Trazer as palavras de Freitas para minha  enunciação foi inevitável. Ao  ler o texto da autora, que está no prelo,  tive a certeza de que colocá-lo como epígrafe apresentaria subsídios  para que pudesse compreender  que somente por meio dessa disciplina não conseguirei abranger  por completo o   pensamento bakhtiniano. Preciso prosseguir em meu caminho de  leituras, reflexões e sistematizações na busca de uma maior aprendizagem.
A tessitura desse texto apresentando a proposta teórico metodológica de minha pesquisa de dissertação de Mestrado em Educação  é um  grande desafio e algo de extrema provocação, que acolhi de braços abertos. Versar a respeito do pensamento bakhtiniano em uma pesquisa sobre o Ensino de Geografia  é a possibilidade de  constituir novos olhares e novos enunciados à ciência geográfica.
 A Geografia sempre ocupou um lugar privilegiado em minha vida acadêmica e profissional. Ao longo dos anos como educadora, tenho me aprofundado em estudos e reflexões sobre o Ensino  de Geografia para o primeiro segmento do Ensino Fundamental. Os diversos enunciados produzidos no cotidiano das aulas e a interação verbal proporcionada pelos diálogos face a face com educadores foram motivos que me levaram a pesquisar sobre o Ensino de Geografia nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
            Do lugar que ocupo como  educadora geográfica e pesquisadora na área das Ciências Humanas  volto meu olhar para a investigação que proponho no campo da Educação, para a possibilidade de perceber o outro enquanto sujeito. Um sujeito criativo, ativo, participativo, com potencialidades, possibilidades, produtor de cultura, saberes e direitos. Percebo que cada sujeito constrói  em sua trajetória de vida, que é única e singular,  uma determinada  forma de interpretar e conceber no mundo em que está inserido. 
             Levando em consideração que a pesquisa  induz o pesquisador a enfrentar questões desafiadoras no seu processo investigativo, um dos pontos a serem suscitados  inicialmente  é a escolha dos referenciais metodológicos. Uma pesquisa que saiba ouvir, observar, constituir-me e constituir o outro enquanto  sujeito como elo participante da investigação apresenta uma leitura condizente com minha postura acadêmica.
            Tendo como ponto de partida que concebo o outro enquanto sujeito partícipe de seu processo cultural, acolho a pesquisa qualitativa orientada pela teoria enunciativa da linguagem de Mikhail Bakhtin como norteadora de minha pesquisa de Mestrado em Educação. Essa abordagem percebe a pesquisa como uma relação entre sujeitos, em uma situação dialógica. Constitui-se, então, como uma forma distinta de se produzir conhecimento na área das Ciências Humanas.
            Compartilho das reflexões que impulsionam  a percepção dos múltiplos olhares ao processo de alfabetização dos educandos. Avançar nessas discussões é perceber que este deva ser alfabetizado na leitura e escrita da Língua Portuguesa e, ao mesmo tempo, alfabetizado nos conceitos, habilidades e competências geográficas.
            A escola sempre foi considerada um espaço privilegiado para a produção do conhecimento, entretanto, como se dá o conhecimento geográfico nos anos iniciais do Ensino Fundamental?  Quais sentidos são construídos pelos educadores do primeiro segmento do Ensino Fundamental? Que enunciados são produzidos com relação aos  conceitos geográficos, trabalhados no cotidiano das salas de aula com os educandos?
            No decorrer da pesquisa, procurarei investigar quais sentidos os educadores da Rede Pública do Município de Juiz de Fora (MG) constroem sobre alfabetização geográfica em sua prática pedagógica. O foco será delimitado nos 1º e 2º anos do Ensino Fundamental por entender que nessa etapa  o processo de alfabetização concretiza-se para os educandos.
            Ao eleger a pesquisa qualitativa como suporte metodológico dialogando com as ideias de Mikhail Bakhtin, apreendo que esse autor não extrai conceitos e ideias  fora de um contexto em que foram geradas e que, por outro lado,  as escolhas que faço não são neutras ou imparciais. O  desafio, então,   é, por meio de minha singularidade e percepção de mundo, realizar uma pesquisa acadêmica responsiva, pois, ao assumir uma determinada posição de pesquisa, com uma determinada leitura de mundo, passo a ter uma postura ética  e responsiva por aquilo que produzo academicamente.

MOVIMENTOS  DE CONSTRUÇÃO DE UMA PESQUISA NA PERSPECTIVA BAKHTINIANA
            Mikhail Bakhtin é um autor que dedicou seus estudos à linguagem. Para ele, a linguagem se dá na interação verbal, no diálogo face a face, nas enunciações entre os sujeitos.
Bakhtin (Volochinov) (1988)  compreende a gramática como necessária para o entendimento da língua. Mas assegura que a essência desta está na interação verbal. Assim, o  que  lhe interessa é o enunciado. Faz a crítica de que a linguística não focaliza o enunciado, mas as normas da língua.
Para esse mesmo autor (1988), a realidade fundamental da língua não está no sistema abstrato de normas, no objetivismo abstrato, nem na enunciação monológica isolada do subjetivismo idealista, entretanto encontra-se na interação verbal. Argumenta que a verdadeira substância da língua é constituída “pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações” (p.127).
A partir dessas formulações, apresenta que o diálogo não acontece somente face a face, mas no espaço e no tempo. Diálogo não é, exclusivamente, dialogar, discorrer. Não é querer chegar a uma singular verdade, mas argumentar.  É uma constituição entre os locutores. O diálogo, então,  seria, nessa percepção,  dialética.
Nesse sentido, a ideia de objetividade amparada pelos positivistas torna-se sem fundamento. O ser humano, em sua complexidade e seus múltiplos sentidos e significados, não pode ser considerado por uma perspectiva teórica-metodológica que estabeleça leis universais.
Objetivar um  trabalho de pesquisa qualitativa  para as Ciências Humanas, segundo Freitas (2003, p.27-28), imprime algumas características distintas:

. A fonte dos dados é o texto (contexto) no qual o acontecimento
emerge, focalizando o particular enquanto instância de uma  totalidade social. Procura-se, portanto, compreender os sujeitos envolvidos na investigação para, através deles, compreender também o seu contexto.

. As questões formuladas para a pesquisa não são estabelecidas a partir da operacionalização de variáveis, mas se orientam para a compreensão dos fenômenos em toda a sua complexidade  e em seu acontecer histórico. isto é, não se cria artificialmente uma situação n da investigação o seu acontecer, no seu processo de desenvolvimento.

. O processo de coleta de dados caracteriza-se pela ênfase da compreensão, valendo-se da arte da descrição que deve ser completada, porém, pela explicação dos fenômenos em estudo, procurando as possíveis relações dos eventos investigados numa interação do individual com o social.

. A ênfase da atividade do pesquisador situa-se no processo de transformação e mudanças em que se desenrolam os fenômenos humanos, procurando reconstruir a historia de sua origem e de seu desenvolvimento.

. O pesquisador é um dos principais instrumentos da pesquisa porque, sendo parte integrante da investigação, sua compreensão se constrói a partir do lugar sócio-histórico no qual se situa e depende das relações intersubjetivas que estabelece com os sujeitos com quem pesquisa.

. O critério que se busca[4] numa pesquisa não é a precisão do conhecimento, mas a profundidade da penetração e a participação ativa tanto do investigador quanto do investigado. disso resulta que o pesquisador e pesquisado têm oportunidade para refletir, aprender e ressignificar-se no processo de pesquisa.

Em ressonância com essa perspectiva, acompanharei o processo  investigativo no seu acontecer, destacando um novo olhar do pesquisador na produção do conhecimento, construindo instrumentos metodológicos coerentes com essa proposta. Desse modo, a teoria enunciativa da linguagem  proporciona outro olhar para a pesquisa nas Ciências Humanas.  Para Bakhtin, “o objeto das Ciências Humanas, é o homem, ser expressivo e falante” (2003, p.395), que não pode ser visto como objeto, mas como um  ser de sentido e significado.
Ao se pesquisar e estudar o  homem,  precisa-se ter claro que, por meio de seus gestos, suas falas, suas expressões, ele transmite sentidos e significados nas relações que estabelece com outros sujeitos. A construção do conhecimento a cerca do sujeito pesquisado só terá sentido a partir do momento que partilho, socializo,  divido, construo e reconstruo com o outro esses conhecimentos, esses saberes.
Bakhtin  traz uma  grande contribuição  à pesquisa nas Ciências Humanas,   permitindo ao pesquisador, do lugar  que ocupa, perceber e entender o evento pesquisado, o pesquisador tem então, condições de realizar uma compreensão  e interpretação do espaço vivido. Esse movimento é entendido pelo conceito de exotopia. Ao se distanciar, colocar-se fora do outro, o que atribui  ao pesquisador um excedente de visão  que lhe admite dar forma, refinamento, ao que ouviu durante sua investigação,  imprimindo-lhe seu horizonte social e do pesquisado. Esse movimento pressupõe dois sujeitos que interagem  em um processo de diálogo.  O pesquisado e pesquisador saem dessa investigação transformados, pois interagem, ressignificam, refletem e apreendem novos sentidos e significados no decorrer da pesquisa. Tornam-se, segundo Amorim (2006), produtores de texto. Contudo, um não deve silenciar o outro.
Compreender o  enunciado do outrem é orientar-se para o outro. Esse movimento de compreensão que se dá entre os sujeitos permite distinguir o outro a partir de um campo de visão distinto; mas necessito, enquanto pesquisadora,  de voltar ao meu lugar e, com as condições que tenho, perceber o pesquisado com outra perceptiva, com outro olhar, realizando um movimento exotópico.
Amorim (2006, p. 98-99) explica que:
O texto pesquisado não pode fazer desaparecer o texto do pesquisador, como se este se eximisse de qualquer afirmação, que se distinga do que diz o pesquisado. O fundamental é que a pesquisa não realize nenhum tipo de fusão dos dois pontos de vista, mas que mantenha o caráter  de diálogo, revelando sempre as diferenças e a tensão entre elas.

O pesquisado, então, atua, transforma e é transformado durante o processo investigativo da pesquisa. É um movimento de constante alteração tanto do  pesquisador quanto do pesquisado.
Exotopia, segundo Amorim, significa “desdobramentos de olhares a partir de um lugar exterior” (2003, p.14). O meu olhar de investigadora sobre o pesquisado nunca será o mesmo que ele tem de si. Como pesquisadora, com meu excedente de visão, posso perceber algo do modo como ele se vê,  que  ele próprio não percebe e,  então, configuro o que vejo, por meio do que ele não pode ver e nem perceber. Essa distância  que tomo do evento não significa negar minha condição de educadora geográfica e discente em Educação, nem minhas vivências anteriores que me constituem como sujeito histórico e social, mas na verdade é sobrepor esses novos enunciados a esses novos interlocutores. De acordo com essa perspectiva, elegi como instrumentos metodológicos duas dimensões para a pesquisa, a observação mediada e as entrevistas dialógicas.
A observação mediada é mais do que observar ou anotar, sugere uma relação de diálogo entre os sujeitos. Aponta para  a mudança, a transformação tanto do pesquisador quanto do pesquisado.  Constitui-se  em um encontro de muitas vozes,   que podem ser verbais ou  gestuais, tudo o que de alguma forma decorre sentido. “São discursos  enunciativos, que refletem e refratam a realidade da qual fazem parte construindo uma verdadeira tessitura da vida social”. (Freitas, 2003, p.33).
A observação perpassa pela dimensão da alteritária, ou seja,  ao ir a campo como pesquisadora, torno-me parte dele, sem deixar de realizar um movimento exotópico. Cada sujeito irá refratar de uma forma, ou de outra, de acordo com suas visões,  percepções, seu olhar crítico, reflexivo, suas interpretações e  leituras de mundo;  é nesse encontro dos sujeitos, das muitas falas, que refratam de formas diferenciadas e que dialogam a cada encontro, que se constitui a relevância da observação mediada.
A entrevista dialógica individual ou coletiva se constitui em uma relação de interação verbal, por meio do encontro entre dois ou mais sujeitos que compartilham visões de mundo diferenciadas, podendo ser entendida como um processo  de linguagem, que aponta para uma interação, produzindo um novo conhecimento. 
Posso, então, acolher as entrevistas dialógicas a partir do momento que suponho dois sujeitos em uma situação de interação verbal; entre pesquisado e  pesquisador aparecem palavras, que propiciam  a construção de novos sentidos a partir dos discursos produzidos  no diálogo face a face.

MOVIMENTOS INCONCLUSOS
            Por meio de minha trajetória acadêmica, única e singular,  como educadora geográfica e pesquisadora, tenho, agora, o desafio e o comprometimento responsivo de construir meu próprio olhar ao realizar a pesquisa no campo por meio das interações que dela  decorrerão.
            Na condição de Mestranda em Educação, distanciar-me, voltar ao meu lugar, manter uma posição exotópica não quer dizer excluir-me de responsabilidades, ou negar  a posição de educadora ou pesquisadora que ocupo; é, na verdade, entrelaçar-me a esses novos eventos, com esses novos sujeitos que surgirão e participar ativamente de todo processo de conhecimento que do campo irá emergir.
            Os movimentos proporcionados pelo mundo contemporâneo, como globalização e neoliberalismo, remodelaram valores como solidariedade e justiça social. Práticas de mercado são pautadas exclusivamente no lucro e  o homem percebido na sua individualidade, são dinâmicas que se concretizaram nas sociedades tanto  globais quanto locais.  A política neoliberal enfraqueceu o Estado, e as políticas educacionais implementadas desde o final do século XX propiciaram um processo de desvalorização da Educação em território brasileiro.
            A Educação brasileira precisa cada vez mais de pesquisas voltadas para a interação, interlocução, diálogos, leituras com os educadores que estão vivenciando seus dilemas, conflitos e angústias  no cotidiano das escolas públicas.
             Acolho as palavras de Amorim  (2003, p. 16) quando a autora afirma que:
A teoria e a estética somente se tornam éticas quando viram ato: quando alguém  singular, numa posição singular e concreta, assume a obra ou o pensamento em questão. Assumir um pensamento assiná-lo, ser responsável por ele em face dos outros num contexto real e concreto, tornar um pensamento um ato, eis o que torna possível um pensamento ético.
           
            Observo que esse movimento ético e responsivo é  o que anseio na pesquisa de Mestrado. A maior finalidade é  que  as reflexões acadêmicas que alcançarei possam chegar aos educadores que estão nas escolas produzindo conhecimento geográfico para os anos iniciais do Ensino Fundamental. Por meio de meu excedente de visão, com meu olhar sobre os movimentos que decorrem do mundo contemporâneo, vislumbro contribuir com uma pesquisa em que possam surgir  múltiplos enunciados, vários sujeitos, olhares diversos em horizontes sociais distintos.
            Com uma pesquisa de abordagem quantitativa orientada pela teoria enunciativa da linguagem busco uma participação ativa, decorrente de  meu olhar crítico, reflexivo,  realizado pela minha singularidade que irá se defrontar com as singularidades dos outros sujeitos por meio de um processo de interação e de diálogo presente no processo investigativo. Que ocorram momentos de aprendizagens tanto para mim quanto para os sujeitos que encontrarei no campo investigativo.

REFERÊNCIAS
AMORIM, Marília. A contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação ética estética e epistemológica. In. FREITAS, M. T. A; JOBIM, E SOUZA, S. KRAMER, S. (orgs) Ciências Humanas e pesquisa. Leitura de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2003, p.11-25.
AMORIM, Marília. Cronotopo e exotopia. In. BRAIT, Beth. Bakhtin-outros conceitos chave. São Paulo: Contexto, 2006, p. 95-114.
BAKHTIN, Mikhail. Metodologia das ciências humanas. In. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 393-410.
BAKHTIN, Mikhail. (Volochinov) Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, HUCITEC, 1988.
FREITAS, Maria Teresa de Assunção. A perspectiva  sócio-histórica: uma visão humana da construção do conhecimento. In. FREITAS, M. T. A; JOBIM, E SOUZA, S. KRAMER, S. (orgs) Ciências Humanas e pesquisa. Leitura de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2003, p.26-38.
FREITAS, Maria Teresa de Assunção & RAMOS, Bruna Sola. Fazer pesquisa na abordagem histórico-cultural: metodologias em construção. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2010.


[1] O presente texto é parte do artigo  apresentado à disciplina Processos de Pensamento e Linguagem em Bakhtin ministrado pela  Professora Drª. Maria Teresa Assunção Freitas.  Mestrado em Educação. PPGE/UFJF.
[2] Graduada em Geografia. Especialista em Alfabetização e Linguagem UFJF. Mestranda em Educação PPGE/UFJF.
[3] Doutora em Educação pela PUC- Rio de Janeiro e Mestre em Educação pela UFRJ. Professora Associada da UFJF, atuando como professora do Programa de Pós-Graduação PPGE/UFJF. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Linguagem Interação e Conhecimento (LIC-UFJF).
[4] Grifo meu.

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